O silêncio de Freud
O que a Psicanálise pode oferecer ao Direito?
Publicado por Claudius Viana - 20 horas atrás
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O ano de 2016 marca os cento e dez anos da publicação de A Psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos, escrito em 1906 por Sigmund Freud.
Os contatos posteriores de Freud com a ciência jurídica foram poucos e espaçados. Um de seus três estudos sobre tipos de caráter (1916) relaciona-se diretamente com a então denominada “psicologia do crime”; e em apenas duas outras ocasiões o criador da Psicanálise escreveu relatórios acerca de casos criminais. Em uma delas (1931) pediram-lhe que examinasse o parecer de um especialista num caso de assassinato, e na outra, atendendo um pedido da defesa num caso de estupro, redigiu um memorando (1922), que foi perdido e nunca chegou a ser publicado. Nos dois casos expôs sua reprovação a uma aplicação leiga das teorias psicanalíticas nos processos legais.
O artigo de 1906 é a compilação de uma conferência realizada perante um público de acadêmicos e mestres de Direito da Universidade de Viena, para o qual Freud expôs um breve esboço da teoria psicanalítica, explanando suas ideias sobre a possibilidade de utilizar as “experiências de associação”, aplicação particular de princípios básicos da Psicanálise, na busca de uma maior fidedignidade nos depoimentos prestados perante os tribunais. O texto permite deduzir que já haviam sido realizadas tentativas de incorporação dessa técnica nos processos judiciais, mas não há notícias de avanço além de um nível experimental.
O artigo de seis páginas, ao qual remeto o leitor mais interessado, é consideravelmente inconcluso sobre o apoio de Freud à associação entre o Direito e à Psicanálise. Em seus últimos parágrafos, Freud afirma seu interesse na ligação entre sua área de conhecimento e a prática judicial, mas questiona a utilidade do seu próprio campo para a ciência jurídica, dado o afastamento entre ambos e a impossibilidade de reprodução experimental da situação psicológica existente no interrogatório de um acusado numa investigação criminal.
Friso que o presente escrito se funda em uma crítica às relações entre o Direito e a Psicanálise. Não me pronuncio aqui sobre a Psicologia. Termos que ainda são motivo de confusão e muitas vezes indiferenciados, Psicanálise e Psicologia se configuram como campos autônomos, possuindo diferentes abordagens e objetos de estudo. Definirei tão somente o primeiro, utilizando os termos de seu próprio criador: (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos, e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumulou numa nova disciplina científica.
Que também não se assuma aqui minha negação pelo desenvolvimento posterior de saberes que aproximaram a Psicologia e o Direito. Apropriando-me do jargão, reconheço a existência de provas abundantes desse fato: a inserção de matérias relativas ao estudo da mente e do comportamento (por exemplo: Psicologia Forense, Psicologia Aplicada ao Direito, Psicologia Jurídica, etc) nos currículos dos cursos de Direito, bem como suas contrapartidas nas graduações em Psicologia; a possibilidade do aprofundamento profissional nessas ementas em cursos de especialização oferecidos para psicólogos e bacharéis em Direito; e a considerável produção de artigos e seminários sobre o tema são, dentre outras, testemunhas do desenvolvimento, ou no mínimo, das tentativas de articulação e de reflexões sobre o tema.
Mas são também testemunhas da oferta de um saber-produto, em virtude da existência de uma demanda por ele. E o que cada campo busca nessa aproximação? Quais seus desejos? A grosso modo, podemos falar da natural e lógica impossibilidade do Direito de avaliar subjetividades e motivações (no sentido psicológico), embora se depare constantemente com essa necessidade, e transfira para outra ciência esse encargo, para um terceiro que lhe ofereça uma resposta técnico-cientifica, com suficientes neutralidade, impessoalidade e precisão. Examinemos essa noção pelo termo que a designa: perícia, a verificação de um fato por um profissional habilitado, realizada para esclarecê-lo ou apurar suas causas. E a Justiça é pródiga em se associar com especialistas - cito, como exemplos, a Medicina, a Engenharia, as Ciências Contábeis - que se pronunciem tecnicamente sobre os pontos obscuros que precisam ser eliminados e esclarecidos nas demandas que ela própria atende.
Porém, é exatamente dessa modalidade de certeza, de determinismo, que a Psicanálise não pode falar. Os caminhos do inconsciente, sobredeterminados, plurais, heterogêneos e múltiplos não são daquela ordem que pode ser trazida à luz como verdade técnica e concreta, por mais que “laudos técnicos” oferecidos em resposta a demandas “periciais” apontem para a possibilidade de afirmações contrárias. Tal quadro traz em si uma contradição incômoda, pois ao mesmo tempo que a Psicanálise atravessava o século XX ganhando espaços e reconhecimento social, é fato que ela jamais atingiu a confiabilidade das ciências exatas. E justamente este desequilíbrio entre a tentativa de cientificidade e a incompletude nessa trilha desemboca em suas representações mais populares, como ilustra Moscovici em La Psicanalyse, son image et son public: "A figura do psicanalista, ora aparece rodeada de um halo de sabedoria e equilíbrio, ora imersa em um mundo estranho e perigoso”, detendo “um poder inquietante, pois pode influir sobre o destino dos indivíduos”.
A Psicanálise, nos cento e dez anos que nos separam da publicação da determinação dos fatos, soube associar-se de maneira extremamente produtiva com inúmeros campos do conhecimento humano. Artes, Religião, Medicina, Filosofia, Sociologia e Antropologia são a ponta do iceberg no repertório de saberes revisitado por Freud ao longo de sua extensa produção intelectual. O que nos leva a questionar o motivo do seu afastamento, ou antes a sua falta de contribuições para a Ciência Jurídica. Certamente caberia mais de uma conclusão sobre esse hiato. Para ficarmos em apenas uma possibilidade, propomos que o silêncio de Freud adverte o quanto é incabível a crença na possibilidade de compreender técnica e matematicamente a mente de nosso semelhante, conhecimento que - para o bem ou para o mal - ainda permanece para além de um horizonte distante.
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