Lei 13.245/2016: contraditório e ampla defesa na investigação criminal? (Parte 2)
Publicado por Canal Ciências Criminais - 2 dias atrás
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Por Francisco Sannini Neto
Dando sequência ao artigo da semana passada (veja aqui), a nova lei altera o artigo 7º, do Estatuto da OAB, que trata dos direitos do advogado. Pois bem, a primeira mudança permite que os defensores possam “examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de prisão em flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”.
Nesse ponto não encontramos grandes inovações, sendo que em sentido semelhante já existia a Súmula Vinculante nº 14, do Supremo Tribunal Federal[1]. Nos parece que aqui a intenção do legislador foi apenas adequar o Estatuto ao cenário atual. Primeiro porque em decisão recente o STF firmou entendimento no sentido de que o Ministério Público pode conduzir, por meios próprios, investigações criminais[2]. Assim, especialmente pelo fato da investigação feita pelo MP não contar com uma adequada previsão legal, deixando totalmente vulnerável a figura do investigado, que, em tese, nem sequer precisaria ser ouvido, o texto legal deixa claro que o advogado pode examinar, “em qualquer instituição”, procedimentos investigatórios de interesse de seu cliente.
No mesmo sentido, a lei assegura a participação do advogado em procedimentos investigatórios de “qualquer natureza”, não se limitando à seara criminal, abrangendo, destarte, apuratórios fiscais, administrativos, entre outros. Isso significa que deve ser assegurado ao advogado o direito de analisar inquérito policial, termo circunstanciado de ocorrência, procedimentos investigativos criminais desenvolvidos pelo MP, inquérito policial militar, inquérito civil público, sindicâncias etc.
Outra adequação que merece destaque nesse dispositivo se refere ao fato de que o advogado, ao analisar o procedimento investigativo, pode copiar peças ou fazer apontamentos, “em meio físico ou digital”. Quem atua na prática sabe que essa alteração teve destinatário certo, qual seja, os casos em que o defensor se vale do aparelho celular para tirar fotos das peças mais importantes dos autos. Nada mais lógico, afinal, se a ideia é ampliar a defesa na investigação, qualquer inovação tecnológica que facilite esse trabalho deve ser utilizada.
Saliente-se, ainda, que o defensor deve ter acesso ao procedimento mesmo que este esteja concluso para a análise da autoridade responsável pela sua condução. Aqui nós fazemos algumas ressalvas. Primeiramente, destacamos que a regra é o mais amplo acesso do advogado ao procedimento do interesse de seu cliente. Contudo, no dia a dia da polícia judiciária, por exemplo, é comum a existência de investigações que se desenvolvem nos limites dos prazos legais. Desse modo, em se tratando de um inquérito policial com indiciado preso temporariamente, onde o prazo para a conclusão das investigações é extremamente curto, pode acontecer de o advogado buscar acesso aos autos no seu último dia, ocasião em que o delegado de polícia, não raro, estará trabalhando no relatório final do procedimento. Em tais situações deve prevalecer o bom senso e se realmente a consulta do defensor não for possível naquele momento, isso não constituirá uma violação as suas prerrogativas, afinal, os prazos legais precisam ser respeitados, podendo, a sua inobservância, acarretar na responsabilização funcional da autoridade policial. O que não podemos admitir é a má-fé de autoridades com o intuito exclusivo de prejudicar a atuação da defesa.
Feitos os primeiros comentários, destacamos que a inovação mais polêmica é aquela prevista no inciso XXI, do art. 7º, senão vejamos. De acordo com o dispositivo, é direito do advogado “assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos; b) (VETADO).”
Inicialmente, entendemos que previsão semelhante a esta deveria constar no Código de Processo Penal como um direito do investigado, muito mais do que uma prerrogativa do advogado, especialmente quando se tratar do interrogatório, hoje encarado essencialmente como um instrumento de defesa.
Por outro lado, o aspecto mais importante e auspicioso do dispositivo se relaciona com a teoria das nulidades, uma vez que, ao que nos parece, será colocada uma pá de cal sobre a discussão em torno da possibilidade de existência de nulidades dentro do inquérito policial. Até então, prevalecia na doutrina o entendimento de que as eventuais irregularidades da investigação não poderiam afetar o processo posterior.
Agora, todavia, a lei foi clara em estabelecer que a obstrução da assistência do advogado ao seu cliente durante depoimento ou interrogatório gera a nulidade absoluta destes atos, bem como dos demais elementos investigatórios ou probatórios deles decorrentes. É, de fato, auspiciosa essa inovação, que, inclusive, adota ateoria dos frutos da árvore envenenada no seu conteúdo.
Assim, se o advogado não puder assessorar seu cliente durante um interrogatório, por exemplo, e neste ato o investigado confessar o homicídio de uma pessoa, indicando, ademais, coautores e o local em que arma utilizada na execução do crime pode ser encontrada, entendemos que essa confissão é absolutamente nula, não podendo ser utilizada como prova. Outrossim, a arma não poderá ser utilizada como fonte de prova, uma vez que seu encontro foi derivado de um ato nulo. Pela mesma razão, a delação de eventuais coautores não poderia lhes acarretar qualquer prejuízo.
Advertimos, contudo, que a teoria dos frutos da árvore envenenada não é absoluta, podendo a sua incidência ser limitada por outras teorias, tais como a da “fonte independente” (independent source limitation), da “descoberta inevitável” (inevitable discovery) e a limitação da “contaminação expurgada” (‘purged taint’ limitationi).
De maneira ilustrativa, se no caso acima destacado não houver outros elementos de prova contra o investigado que confessou o crime, seu indiciamento deve ser anulado e a acusação não poderá se valer dessa confissão para subsidiar a ação penal. Se o processo já estiver em andamento e não houver outras provas contra o acusado, deverá ser julgado extinto sem o julgamento do mérito.
Vale frisar, ainda, que o texto legal foi claro no sentido de que a nulidade não se restringe aos elementos probatórios, contaminando, outrossim, os elementos investigatórios. Voltando ao exemplo acima, isso significa que se o investigado afirmar na sua confissão que após o crime efetuou várias ligações para os seus comparsas e indicar onde o aparelho celular pode ser encontrado, a autoridade responsável pela investigação não poderá representar/requerer a quebra do sigilo telefônico da linha (ou IMEI), uma vez que este elemento investigativo seria nulo por derivação.
Nesse ponto, chamamos a atenção do leitor para o fato de que a inovação legislativa não torna obrigatória a presença do advogado durante as investigações, estabelecendo apenas que o causídico tem o direito de assessorar seu cliente nas suas oitivas (interrogatório, depoimentos ou declarações). Com efeito, só haverá nulidade nas situações em que esta prerrogativa for cerceada pela autoridade responsável pela condução do procedimento.
Isso não significa que nos inquéritos policiais, por exemplo, o investigado não possa ser ouvido sem a presença de um advogado. A nulidade em tais casos se impõe em virtude do cerceamento de uma prerrogativa do defensor e não em decorrência da ausência de defesa. Percebe-se, pois, que estamos diante de situações completamente distintas.
Destarte, nas lavraturas de autos de prisão em flagrante o preso poderá ser formalmente indiciado e interrogado sem dispor de qualquer assessoria jurídica, desde que, é claro, não possua advogado constituído para o ato. Cabe ao delegado de polícia, como primeiro garantidor da legalidade e da justiça, cientificá-lo acerca dos seus direitos constitucionais, inclusive sobre seu direito de ser assessorado por um advogado e, na sequencia, proceder naturalmente na formalização dos atos de polícia judiciária cabíveis.
O advogado, por sua vez, tão logo assuma a defesa do investigado, deverá juntar uma procuração nos autos do procedimento investigativo, demonstrando, assim, que ele possui assistência jurídica naquele caso. Nesse contexto, o presidente da investigação deverá notificar a defesa no momento da sua oitiva, pois, do contrário, esta será absolutamente nula[3]. Indo um pouco além e em consonância com o espírito da lei, recomendamos que os delegados de polícia constem de forma expressa em suas notificações para oitivas a possibilidade da pessoa ser assessorada por um advogado durante a formalização do ato. Aliás, em caso de indiciamento nos autos do inquérito policial, o ideal seria que a notificação do investigado deixasse claro o motivo pelo qual ele está sendo chamado na delegacia, viabilizando, destarte, o exercício da sua ampla defesa.
Na próxima coluna analisaremos como a nova lei fortalece os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa dentro da investigação criminal.
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