Desconsideração da personalidade Jurídica no Brasil
Publicado por Otávio Augusto Mantovani Silva - 2 dias atrás
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Autor: Otávio Augusto Mantovani Silva
Introdução
Este Será um artigo que buscará analisar uma das teorias mais importantes no âmbito da autonomia das relações privadas, especialmente das sociedades empresariais. A sociedade empresarial surge de um acordo, ou contrato, verbal ou escrito multilateral no qual as partes nele presentes convergem para um mesmo fim. Para formar uma nova pessoa, uma pessoa jurídica, é indispensável que seus membros sigam as previsões mínimas legais, dispostas especialmente no Código Civil. A definição de personalidade jurídica mais aceita pela doutrina é aquela pela qual um “ente, no caso a sociedade, torna-se capaz de adquirir direitos e contrair obrigações”[1]. Dessa forma é possível conferir uma existência daqueles que possuem esta personalidade diversa daquelas dos membros que a compõe, no caso da sociedade uma personalidade diversa da de seus sócios, ou seja, impera-se uma autonomia das relações.
Essa autonomia das relações é uma das grandes inovações trazidas pelo nosso sistema jurídico, capaz de incentivar o empresário a investir e produzir riquezas afinal várias são as vantagens quais sejam: a garantia de que através da personalidade jurídica destas, seus respectivos patrimônios ficariam protegidos de possíveis dívidas empresariais, possibilidade de possuir seu próprio nome, seus próprios bens, capacidade de responder ativa ou passivamente em juízo sem necessidade de utilizar o nome de seus sócios, resumindo-se tudo em uma autonomia personal. O Estado assim incentiva a produção industrial, que em consequência faz com que o país cresça economicamente, e em contrapartida o empresário passa a ser possuidor de diversas garantias e limitações de responsabilidades na administração de uma sociedade empresarial.
Para se adquirir a personalidade jurídica, além da composição social, da formação estatutária ou contratual, é preciso que o ato constitutivo seja previamente registrado em órgão próprio, sendo no caso das sociedades empresariais no Registro Público das Empresas Mercantis (Junta Comercial), sendo as sociedades simples registradas no Registro Civil das Pessoas Jurídicas. Todos estes trâmites seguindo como norma geral nosso Código civil. Caso haja a dissolução da sociedade, deve haver também uma averbação da respectiva liquidação desta.
Apesar de todo este incentivo, não podemos cair na falácia de crer que estas estão isentas de cumprir as obrigações a todos impostas pelo nosso ordenamento. Diversos são os casos na história de nosso país de empresários e administradores de pessoas jurídicas como um todo, que utilizando da “proteção” que a personalidade desta, lhes conferia cometia vários abusos ferindo vários princípios basilares das relações privadas como o da livre iniciativa e da boa-fé, deixando vários de seus credores sem meios com os quais cobrar-lhes várias dívidas ocasionadas por tais abusos. É neste escopo jurídico que nasce a teoria da desconsideração da personalidade jurídica como uma tentativa de se garantir a autonomia patrimonial de boa-fé, e evitar os abusos em detrimentos de credores.
Neste artigo abordaremos alguns pontos históricos acerca da teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, passando posteriormente para uma compreensão à luz das primeiras normas que positivaram tal doutrina, especialmente o Código de Defesa do Consumidor, até chegarmos à regra geral positiva atualmente no art. 50 de nosso Código Civil. Abordaremos por fim uma importante classificação doutrinária (Teoria Maior e Teoria Menor), trazendo a perspectiva de nossos tribunais acerca desta classificação, especialmente do Superior Tribunal de Justiça – STJ, encerrando com alguns pontos processuais, especialmente do novo CPC.
1. O que é a Desconsideração?
A personalidade jurídica deve ser utilizada para a consecução de fins lícitos da atividade empresarial. A partir do momento que vários são os abusos cometidos o dogma por detrás deste instituto, ou seja, o da autonomia patrimonial deve ser desconsiderado para assim atingir os responsáveis por tal desvirtuamento. A personalidade jurídica é um privilégio que deve ser concedido para fins adequados da produção empresarial, sendo que a partir do momento que estes são descumpridos não há razão para garantir a manutenção da separação patrimonial. Os usos impróprios e desonestos devem ser coibidos. Ao descartar a autonomia patrimonial e assim estender as obrigações aos sócios, estes ficam inibidos, ao menos na teoria, de desvirtuar a pessoa jurídica.
Vale ressaltar que na realidade este instituto não visa destruir a pessoa jurídica, bem como o principio da autonomia patrimonial, mas sim garanti-lo e reforça-lo como forma de encobrir possíveis desvios e distorções em seu uso por parte dos sócios. A desconsideração é assim uma exceção à regra, sendo apenas necessária em caso de abuso personalístico que leve ao prejuízo dos credores respectivos. A desconsideração não deve assim ser pura e simplesmente aplicada para satisfação dos interesses creditícios, mas sim apenas quando houver o descumprimento de seu fim maior que é a finalidade social.
Na definição de Tomazette: “a desconsideração da personalidade jurídica é a retirada episódica, momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa de seus sócios ou administradores, com o fim de coibir o desvio da função da pessoa jurídica, perpetrado por estes”.[2]
2. Aspectos Históricos
2.1. A ideia de uma personalidade Jurídica
Nós precisamos considerar que o Direito existe para satisfazer adequadamente as vontades dos homens, mantendo a ordem e a estabelecendo parâmetros de justiça nas relações entre eles. A personalidade jurídica pode ser assim considerada como uma proteção criada com o amadurecimento da ideia e necessidade de proteção patrimonial de seus sócios, visando assim proteger seus interesses.
Por diversas circunstâncias, por vezes é vantajoso para os homens de modo geral se unirem para constituir uma sociedade, e assim melhor administrar a produção de riquezas. Juntos o investimento de dois ou mais “vale mais” que o de apenas um. O problema é que os sócios não querem comprometer seu patrimônio com esse investimento em uma atividade produtiva industrial. Assim para fomentar a produção industrial, e assim favorecer o desenvolvimento da economia, aumentar a arrecadação de tributos, gerando empregos e renda, e ainda estabelecendo garantias de segurança patrimonial aos sócios, foi desenvolvido o instituto da personalidade jurídica, mas especificamente das “sociedades personificadas”.
Com o desenvolvimento deste modelo societário, seus membros puderam se responsabilizar apenas por suas cotas, criando um ente com obrigações e direitos próprios, arcando assim apenas com possíveis prejuízos decorrentes da atividade empresarial. A criação da sociedade personificada foi a grande “sacada” da atividade empresarial, sendo uma espécie de “sanção positiva” concedida pelo Estado ao conjunto de indivíduos que optam por uma atividade em conjunto, ao invés de individual.
Além da consecução de privilégios aos que dela utilizam a pessoa jurídica cumpre uma determinada função social, que é o da proteção da boa-fé e do patrimônio das partes. Nas palavras de Requião: “a sociedade garante a determinadas pessoas as suas prerrogativas, não é para ser-lhes agradável, mas para assegurar-lhes a própria conservação. Esse é, na verdade, o mais alto atributo do Direito: sua finalidade social”[3]
Entretanto, o uso abusivo dessa proteção legal concedida aos sócios permitiu que várias fraudes trouxessem inúmeros prejuízos para vários credores. Desrespeitando a boa-fé do ordenamento jurídico, vários sócios contraem obrigações e empréstimos em nome da pessoa jurídica, adquirindo para si várias vantagens, enquanto esta acaba sendo responsabilizada, e na maioria das vezes em virtude da insuficiência de bens da Pessoa jurídica o credor acaba restando com o prejuízo, e esta levada à falência. Para inibir este tipo de postura surgiu o instituto da Desconsideração da personalidade jurídica.
É preciso sempre considerar que as atribuições típicas da personalidade jurídica dos diversos entes existentes foi uma das formas que o Direito, em seu conjunto e ordenamento encontrou para conseguir valorizar e aprimorar as relações dos seres humanos, valorizando assim as comunidades e “sociedades” existentes como entes autônomos da de seus participantes. A existência desses entes é traçado como regra geral pelo Código Civil, que enumera em seu art. 45 as disposições principais que necessariamente todo Estatuto ou Contrato social deve seguir como parâmetro mínimo de existência.
A ideia de uma pessoa jurídica é fundamental nas relações comerciais de modo geral, modificando vários entendimentos trazidos de longa data acerca da relação entre as pessoas e estes entes que também são portadores de direitos e obrigações. Vale lembrar que toda Pessoa jurídica possui uma finalidade, qual seja, a de facilitar e garantir as relações mercantis patrimoniais. Assim a Pessoa jurídica se torna independente, concedendo uma roupagem, um “véu” ao conjunto de pessoas que a compõe, sendo independente e autônoma, respondendo individualmente como se um deles fosse.
Pode-se concluir que a Pessoa Jurídica é autônoma sob três aspectos: 1) possui personalidade jurídica própria, não se confundindo com a de seus sócios; 2) possui patrimônio jurídico – e aqui se entende o patrimônio econômico – próprio, distinto do de seus sócios; 3) possui existência jurídica própria, transcendendo a de seus sócios, e encerrando-se de maneira distinta. Todas as obrigações e direitos, regra Geral são de responsabilidades distintas.
2.2.As bases históricas da Desconsideração
Nosso ordenamento jurídico de modo geral, se desenvolveu em paralelo aos atos ilícitos como um todo, de forma que muitos indivíduos percebiam nos atos ilícitos um caminho mais fácil para conseguir se beneficiar, ao invés de seguir a lei, o que gerou o grande número de fraudes e abusos de direito. Muitos buscam agir contra o Direito, contra a Lei, rompendo com toda a estrutura social padrão existente. Esse comportamento egoísta acaba por gerar o caos e a insegurança social que devem ser controlados e administrados pelo Direito.
Tão cedo vários perceberam que poderiam utilizar da personalidade jurídica para praticar atos ilícitos que os favorecessem em detrimento das relações sociais como um todo, abusando da personalidade jurídica para praticar vários atos fraudulentos, lesando vários terceiros. Tudo isso se deu em um momento no qual o Estado passou a conceder privilégios para que o comércio pudesse se expandir e levar o desenvolvimento público, concedendo assim privilégios e proteções patrimoniais para todo aquele que se dispusesse a investir, criando limites à responsabilidade patrimonial dos sócios frente à pessoa jurídica. Como o Direito não poderia acolher tais ilícitos, logo foi desenvolvida, em primeiro pelos tribunais, depois pela doutrina e pela legislação, a Doctrine of disregard of legal entity, no qual permitia-se que os efeitos das obrigações da pessoa jurídica fossem estendidos aos sócios e administradores.
A desconsideração acabou gerando uma espécie de supervalorização da autonomia patrimonial, afinal este seria um instituto criado para se assegurar a prática diligente dos sócios, impedindo e coibindo eventuais abusos desta. Historicamente este seria um instituto tradicionalmente insuscetível de afastamento. Com o decorrer dos anos, já no século XIX buscava-se uma solução para os contínuos abusos que ocorriam por parte de sócios administradores proprietários. Assim seria necessária uma relativização da autonomia patrimonial para não se chegar a resultados contrários ao direito.
Essa teoria lançou suas bases com a jurisprudência do common law britânico e americano, chamada por eles de disregard doctrine, tendo como caso pioneiro mais apontado pela doutrina comercial o case Salomon versus Salomon & Co. Ltd julgado pelos tribunais ingleses nos fins do século XIX, no qual o juiz de 1ª instância considerou que Mr. Salomon em virtude de sua ampla influência e domínio unilateral dentro da sociedade deveria ter seu patrimônio considerado junto com de sua empresa.
Na época Aaron Salomon era um rico empreendedor individual do ramo calçadista na Inglaterra, quando depois de 30 anos de experiência comercial, decide ele abrir uma sociedade limitada com outros 6 sócios. Ele ficou com 20 mil ações da empresa, enquanto os outros, que compunham sua família ficaram com uma cada um. Assim Salomon fazia da empresa o que bem entendi, chegando ao ponto de permitir que esta assumisse vários encargos e obrigações, não tendo recursos suficientes para saldá-los, deixando seus credores em prejuízo. No julgamento do caso, em primeiro e segundo grau foi desconsiderada a personalidade jurídica da empresa e imposta a responsabilização pelas dívidas a Salomon, fazendo surgir assim a “semente” dodisregard doctrine.
Já no plano doutrinário Rolf Serick seria o precursor do disregard doctrine ao apresentar sua tese de doutorado à Universidade de Tübigen em meados do século XX profundo da jurisprudência americana que estabelecia as bases para este procedimento, estabelecendo então a “possibilidade de afastamento dos efeitos da personalização da sociedade – autonomia e separação patrimonial – nos casos em que a personalidade jurídica fosse utilizada de forma abusiva em prejuízo aos interesses dos credores”. [4]Sendo assim, somente nos casos em que fosse comprovado real abuso no uso da personalidade da Pessoa jurídica poderia o juiz desconsiderá-la e executar os bens de seus sócios para saudar suas dívidas.
Naquele momento, era expressamente necessário que para se fosse desconsiderada a personalidade da pessoa jurídica, que ficasse comprovado a real intenção do agente em praticar maliciosamente o abuso, ou seja, exigia-se uma ação dolosa. Além do dolo seria necessária a apresentação de provas concretas da intenção do agente em praticar tais atos. Tudo isso a doutrina tradicional chama como uma concepção subjetivista da desconsideração, por se ter que ir ao íntimo do agente investigar sua intenção real. Nos momentos atuais se busca afastar dessa perspectiva, partindo de análises de cunho mais objetivo, no sentido de que dados estritos adquiridos da análise de dados objetivos, que comprovem o desvio de finalidade ou confusão patrimonial já são suficientes para tal processo.
Vários são também os exemplos possíveis de ser citados da doutrina americana, mas o fato é que foi a partir deste longo processo e tradição anglo-saxã que a desconsideração ganhou força e se desenvolveu de fato. A doutrina teve, portanto, o escopo “preparado” para assegurar-lhes o estudo e desenvolvimento da doutrina da desconsideração. No Brasil foi Rubens Requião o responsável por dar destaque especial a essa sendo publicado em um artigo denominado “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica”, publicado em 1969.
3. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil
A teoria do disregard doctrine chegou ao Brasil na década de 60, segundo a doutrina majoritária, pela obra do comercialista Rubens Requião, que questionava naquele momento a omissão legislativa, bem como defendia sua aplicação em terras brasileiras. Nossa jurisprudência passou desde então a aplicar essa teoria em diversos casos no qual comprovadamente se descobria diversas fraudes praticadas por vários sócios. No ordenamento Jurídico Brasileiro, jamais podemos nos esquecer, a desconsideração é aplicada como exceção à regra da autonomia dos entes, que é a regra geral.
Diante da dificuldade enfrentada com os constantes abusos de personalidades surgiu a doutrina da desconsideração da Personalidade Jurídica, que permite, como já dito, a superação da autonomia patrimonial. Não se trata de uma aplicação legal que abre espaço para realizar um processo de desconsideração, mas sim de uma defesa, proteção, que confere ao Estado a faculdade de verificar se o privilégio da personalidade jurídica está sendo bem utilizado pelos sócios não desvirtuando assim o principio da autonomia patrimonial como um todo.
Para melhor classificação, compreensão e desenvolvimento de todos os trâmites legais da Desconsideração da Personalidade Jurídica, o autor e grande jurista, Fábio Ulhoa Coelho desenvolveu a classificação que se tornou clássica na aplicação da Desconsideração: a Teoria Maior e a Teoria Menor. Em suas palavras se classifica a Teoria Maior e a Teoria Menor da seguinte forma:
Pela teoria maior, autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é afastada em caso de fraude e abuso da sociedade. Já pela teoria menor, o simples prejuízo afasta do credor possibilita afastar a autonomia patrimonial (independentemente de fraude ou abuso).[5]
Tratar-se-á destas teorias em detalhes mais abaixo.
3.1. Teoria Maior e Teoria Menor
3.1.1. Teoria Maior
Vale lembrar que a desconsideração da personalidade jurídica é a exceção à regra da autonomia patrimonial, que deve imperar nas relações societárias. Isso garante que para se declarar a desconsideração seja necessário seguir determinados procedimentos legais, determinados requisitos formais que garantam o princípio da autonomia patrimonial. Para a chamada Teoria Maior a personalidade jurídica é algo que não pode ser desconsiderada pelo simples inadimplemento de uma obrigação, mas apenas pode ocorrer nos casos de real abuso de personalidade, gerando um desvio de função e de finalidade desta pessoa em questão.
Para a teoria maior a cautela a regra é a cautela não podendo simplesmente desconsiderar em virtude de dúvidas ou descumprimentos obrigacionais. Não pode o direito agir cegamente destruindo um importante instituto que é o da personalidade jurídica em virtude de uma má administração do ente em questão. Torna-se necessário adotar alguns fundamentos básicos para se considerar passível uma desconsideração. Entretanto há divergência doutrinária sobre quais seriam, de fato, estes fundamentos. A doutrina se divide em duas posições: 1) os defensores dateoria maior subjetiva e 2) os defensores da teoria maior objetiva.
3.1.1.1. Teoria maior subjetiva
Para essa teoria a desconsideração só pode ser considerada a partir do momento que se comprovar o desvio de finalidade com o abuso de personalidade, e consequentemente de direitos por parte dos sócios. Para essa vertente da teoria maior a pessoa jurídica só é merecedora de tutela jurisdicional quando utiliza seus fins de acordo com o ordenamento jurídico. É a mais consagrada na doutrina brasileira.
3.1.1.2. Teoria maior objetiva
Para essa teoria a teoria objetiva não é tão clara assim. O real fundamento para a desconsideração seria a confusão patrimonial entre o sócio e a pessoa jurídica, de modo a dificultar ou impedir uma possível distinção do patrimônio real das duas partes.
3.1.2. Teoria Menor
Já a teoria menor é aquela que, segundo Fábio Ulhoa, não se exige requisito prévio necessário para se declarar a desconsideração da personalidade, sendo suficiente para tanto a insolvência da pessoa jurídica, ou seja, o descumprimento de uma obrigação por parte dela, devendo seus sócios responder com seu próprio patrimônio. Essa teoria tem sido aplicada em virtude do elevado número de fraudes ocorrendo, deixando grande parte dos credores no prejuízo. A partir desta teoria transfere-se o risco do negócio jurídico para a sociedade, de modo que todos os sócios devem responder por todas as dívidas da empresa caso essa chega a insolvência, independentemente de qualquer ato fraudulento.
De modo geral, o uso abusivo e contínuo de várias pessoas da personalidade jurídica de um ente tem favorecido a adoção desta posição pelos tribunais como um todo. Vale ressaltar que é ela aplicada no Código de Defesa do consumidor, na Lei ambiental e na lei dos crimes financeiros, ganhando cada vez mais força na realidade brasileira.
Para a grande maioria dos doutrinadores esta é uma teoria um tanto quanto prejudicial e equivocada, por fugir do ideal primário da desconsideração, que era garantir a manutenção da autonomia patrimonial, fugindo assim da base teleológica dadesregard doctrine. O surgimento da própria ideia de autonomia patrimonial foi o de garantir e incentivar o desenvolvimento econômico empresarial, sendo que na realidade a desconsideração é um instrumento de proteção e não destruição destas relações.
3.2. Caminho legal da teoria da Desconsideração
Para sua melhor aplicação, devemos deixar claro que a teoria da Desconsideração deve ser aplicada nos limites traçados pela legislação, de forma a permitir seu controle por parte do Estado. Para tanto o legislador ordinário acolheu tal teoria em alguns dispositivos que tenderam para ordens mais específicas, ao passo que outros para fins mais gerais como no caso do art. 50 do CC02.
A primeira previsão legal deste instrumento adveio com o Código de Defesa do Consumidor que em seu art. 28 prevê: “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. Apesar do fim maior de proteção aos consumidores, para aquele momento foi um “ponta pé inicial” à legislação brasileira para adequação desta teoria. Posterior ao CDC a Lei nº 8884/94, que versa sobre a repressão e prevenção às infrações de ordem econômica, previu em seu art. 18 que “a personalidade jurídica do responsável por infração de ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. Em 1998 na lei dos crimes ambientais (Lei 9605/98) também regulamento a desconsideração para os casos dos delitos ao meio ambiente como um todo, provocados por Pessoas jurídicas.
Apesar de serem inovadoras naquele momento, estas três legislações foram duramente criticadas, especialmente por comercialistas. Deve-se deixar claro que elas ainda não serviam para uma regra geral de aplicação da desconsideração, sendo bem específica à suas áreas de abrangência. Além disso, da forma como estava disposta na lei a norma não condizia com a doutrina do disregard doctrine, possuindo nosso ordenamento também já naquele momento, vários remédios eficientes para tais abusos.
Apenas em 2002 com a elaboração do código civil de 2002 é que a teoria da desconsideração recebeu novo tratamento legislativo, refletindo com clareza e fidelidade a teoria do disregard doctrine. Em seu artigo 50 há a seguinte previsão: “Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”. Assim o Código Civil trouxe a disposição que passaria a ser a partir de então a “Regra Geral” da desconsideração da Personalidade Jurídica, sendo apenas ressalvada nos casos especiais previstos nas três leis anteriores a ele. É neste sentido que o Conselho da Justiça Federal (CJF) em seu enunciado nº 51 prevê: “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine – fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema”.
3.2.1. A desconsideração no Código de Defesa do Consumidor
Como é sabido, a teoria da Desconsideração iniciou seu caminho no Brasil pela Doutrina, passando pela Jurisprudência de nossos tribunais, chegando a eclodir pela primeira vez em um dispositivo legal pelo art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, sendo que, segundo alguns doutrinadores, defendem a posição de que este artigo veio para desvirtuar muitos dos pontos da então teoria em formação doutrinária e jurisprudencial, consagrando hipóteses diversas das formuladas doutrinariamente. O dito artigo não foi feito para sua ampla aplicação em todas as relações da pessoa jurídica, mas única e exclusivamente aplicado para as relações de consumo, não havendo analogias à época.
Um dos pontos basilares da doutrina que cuida das relações de Consumo é o de que o consumidor deve ser sempre encarado como parte mais vulnerável na relação com seu fornecedor. Baseado nisso parte da legislação, tendo como lex magna a Lei nº8078/90, o Código de Defesa do Consumidor, se concentra na busca pela consecução dos direitos e a defesa geral do consumidor final, das relações comerciais em geral. Assim as relações consumeiras acabam por afastar vários entes jurídicos que fazem parte de uma cadeia ou conjunto de relações intermediárias, que não são tutelados por esta vertente do direito, mas sim pelo D. Civil, que é mais abrangente e amplo no tratamento de tais questões, buscando sempre também, o equilíbrio entre as partes contratantes.
Considerando todos estes pressupostos e fundamentos de necessidade de proteção e amparo legal da parte mais frágil, ou seja, do consumidor, o Código de Defesa do Consumidor previu em seu art. 28 a Desconsideração da Personalidade jurídica, mas de maneira diversa ao modelo instituído formalmente pela doutrina e jurisprudência até então, afinal segundo a dita norma as hipóteses de aplicação da desconsideração são amplas aos casos de: abuso de direito, excesso de poder (ultra vires), infração da lei, fato ou ato ilícito ou, mesmo, violação das regras que estejam dispostas no contrato social (que aqui não se confunde com o desvio de finalidade previsto no CC), podendo o juiz ainda declarar esta em caso de falência, insolvência civil, ou em virtude do encerramento da pessoa jurídica em virtude de provada sua má administração.
3.2.2. Hipóteses autorizadas da desconsideração
3.2.2.1. Abuso de Direito
O art. 28 do CDC enumera todas as hipóteses cabíveis para os casos de desconsideração. A primeira hipótese é o caso do abuso de direito. O código neste ponto acolheu parte da doutrina que sistematizou a teoria da desconsideração. Devemos sempre lembrar que a Personalidade Jurídica é uma fixação criada para atender determinado fim social, e quando este fim é extrapolado deve ser reprimido, e aqui entra a primeira hipótese de desconsideração.
Segundo o art. 187 do CC comete ato ilícito todo aquele que abusa de um determinado direito, ou seja, “ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, mostrando que todo direito possui uma barreira, ou amarras delimitadoras das ações possíveis destes, devendo ser este excesso manifesto, inequívoco e flagrante. Quando alguém comente um abuso de direito, ela esta violando todo o pacto social formado entre a sociedade e o Estado, no qual cada um agiria nos limites legais permitidos ao seu direito. É uma prática que fere toda a ratio legis do direito e das leis como um todo, buscando assegurar o bem comum, sendo caracterizado o abuso quando há uma privatização deste “bem comum”, ao “bem particular”. Valoriza-se assim a honestidade entre as partes, que buscam agir juridicamente dentro dos limites impostos. A intenção no negócio jurídico deve ser a mais reta quanto possível, não dando margem a possíveis fraudes e erros típicos.
No plano das relações de consumo o abuso de direito é extremamente prejudicial, pois há assim uma quebra da garantia e do equilíbrio porque buscam nossaConstituição entre as relações de consumo e a livre iniciativa. Deve-se atentar para a identidade daquele que responderá pelas obrigações caso haja a desconsideração da personalidade jurídica de fato. Segundo Mamede não devem responder pelos atos abusivos “aqueles que não contribuíram direta ou indiretamente para o ato abusivo, praticando-o ou permitindo que fosse praticado, quando, podendo, deveriam obstá-lo mas se abstiveram de fazê-lo”[6].
3.2.2.2. Excesso de Poder
A segunda hipótese prevista no códex é a do abuso ou excesso de poder por parte dos administradores, e aqui devemos lembrar que a Lei e os Contratos ou Estatutos Sociais das pessoas jurídicas são os responsáveis por delimitar o poder dos vários dirigentes, sendo sua violação umas das hipóteses permissivas à desconsideração. Aqui podemos ainda englobar todas as ações empresariais que se relacionam com um possível excesso de poder como a infração à lei, a prática de atos ilícitos e/ou violação aos contratos e estatutos sociais. Estas últimas hipóteses não deveriam ser consideradas como desconsideração, mas sim uma imputação de responsabilidade aos administradores das respectivas empresas por erros e falhas em sua gestão e não um desmonte da personalidade jurídica. O autor Marlon Tomazette tece uma crítica a este dispositivo pontuando que “a inclusão de tais hipóteses é completamente desnecessária, pois, muito antes do CDC, já existiam dispositivos para coibir tais práticas”[7].
A ideia por detrás do excesso de poder trás muitas controvérsias semânticas, de forma que pode ser este interpretado de diversas formas. Uma delas é quando o representante legal da Pessoa jurídica, ou seu administrador age ferindo direitos e tendo como referência o instituto da Representação, com previsão legal expressa dos artigos 115 ao 120 do Código Civil. Deve-se compreender entretanto que se trata de uma prática e utilização dos poderes dos administradores em geral destas sociedades na relação com o consumidor.
Outra possível compreensão do excesso de poder seria a do abuso do poder econômico que determinada pessoa jurídica possui na relação com o consumidor, de modo a obriga-lo a tomar determinadas medidas que lhe sejam prejudiciais nas relações com a empresa.
3.2.2.3. Má Administração
Por fim o dito artigo trouxe a possibilidade no caso de má administração, gerando a falência, a insolvência e o encerramento das atividades provocadas por está má administração, sendo assim uma medida não tão precisa, considerando a definição de má administração como algo muito subjetivo e abstrato, afinal caberia a nós averiguar a conduta dos administradores de maneira particular.
O parâmetro aqui pontuado, que também é adotado pela lei nº 8.884/94 é que a má administração, seja pela inabilidade do administrador, por ação ou omissão que levaram a pessoa jurídica ao prejuízo causando ainda prejuízo ao consumidor. O exercício da atividade que se relaciona com o consumidor aqui deve buscar atender o profissionalismo bem como a prática constante buscando o desenvolvimento da atividade fim da sociedade e da empresa em questão. Na má administração, entram todas as características típicas do agente imperito, que desconhecia de toda a técnica necessária para manter a sociedade viva, cometendo uma ação ou omissão que levem esta ao prejuízo.
Em razão dos prejuízos assim gerados na relação de consumo, pode-se aplicar a desconsideração para ressarcir o consumidor por falhas e equívocos. Para se reconhecer a má administração, capaz de cominar na desconsideração da personalidade jurídica considerando alguns pressupostos objetivos, como o fim da sociedade fruto do encerramento regular de suas atividades, ou a paralisação, ou inatividade da empresa por tempo determinado. Gadston Mamede define a má administração em duas perspectivas:
Em primeiro lugar, haverá má administração sempre que se verifique desídia, desde o abandono da administração do negócio [...] até o desinteresse habitual pelos assuntos a ele concernentes e pelas atividades relativas, em que a presença física do administrador ou a supervisão do sócio ou sócios não revela compromisso com o empreendimento. [...] Por outro lado, ter-se-á a má administração, igualmente, quando se afira inabilidade, incompetência, imperícia, concretizada por meio a prática de atos que caracterizem inabilidade flagrante incontestável. [8]
Para não se caracterizar nenhum tipo de ação arbitrária este tipo de desconsideração deve ser apurado com profundidade e clareza, de forma a conseguir chegar à melhor e mais eficaz solução ao problema.
3.2.2.4. Grupos, consórcios e sociedades coligadas
Os parágrafos § 2º, 3º e 4º se referem ao caso de Sociedades e grupos colegiados de modo geral que em suas ações acabam tendo alguma relação e um determinado grau de responsabilidade com danos ao consumidor que sejam passíveis de desconsideração. Nos casos especificados na legislação em questão o consumidor pode requerer a desconsideração, para que a partir desta consiga atingir os bens dos sócios para saudar seus créditos.
3.2.2.5. O parágrafo 5º do artigo 28
Além das possibilidades elencadas no caput do artigo 28 seu § 5º traz a disposição que também foi duramente criticada, por abrir margens à dúvida, dizendo que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”, deixando amplo espaço para várias interpretações acerca disso. Dentre as várias interpretações doutrinarias o STJ partilha da visão do autor Luiz Antônio Rizzato Nunes[9] que entende que as hipóteses previstas no caput do art. 28 seriam meramente exemplificativas, cabendo ao § 5º dar o fecho, ou seja, completar o entendimento acerca deste dispositivo. O STJ assevera pontuando:
A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a merca prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.[10]
Entende-se por fim que as disposições do CDC foram formuladas com o fim maior de proteção ao consumidor, mas acabou caindo no equívoco desproteger um outro importante bem jurídico que é a Personalidade jurídica. Assim a autonomia patrimonial acabou sendo um tanto quanto relativizada, na esfera de defesa do consumidor, o que se mostra muito prejudicial em muitos casos. Assim para não incorrer no equívoco o dito artigo precisa ser interpretado logicamente e sob uma perspectiva teleológica das disposições como um todo. Se este dispositivo for interpretado em sua literalidade, sem se considerar as conceituações doutrinárias básicas acerca do tema, a personalidade jurídica não existiria mais para as relações de consumo.
A desconsideração deve ser aplicada aqui quando o justo ressarcimento pelos danos causados pela pessoa jurídica for impedido como um todo por outros fatores. A doutrina até utiliza o exemplo de um possível furto na sociedade, que fez com que esta não pudesse adimplir seus consumidores: este evento é uma das possibilidades de não responsabilização da empresa frente ao consumidor. Em síntese, portanto, só poderá ser decretada a desconsideração no caso de uma injusta utilização da personalidade jurídica. Vale considerar ainda que a conduta do sócio deve ser causa para a ação injusta que assim permitiria a desconsideração.
3.2.2.6. Teoria da desconsideração e imputação direta de responsabilidade: crítica ao art. 28 do CDC
Uma das mais comuns críticas ao texto do CDC é aquela que diz que nosso legislador se equivocou e se esqueceu ao não fazer uma clara distinção entre as hipóteses de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica, ou a imputação direta de responsabilidade decorrente da prática de atos ilícitos aos seus respectivos sócios. Assim a aplicação da teoria da desconsideração se mostrou um tanto quanto desnecessária para diversas situações como a prática de atos ilícitos e o abuso de poderes.
3.2.2.7. Teoria da Desconsideração e mero prejuízo do credor: crítica ao art. 28 § 5º do CDC
Um outro ponto muito criticado é a previsão do § 5º do art. 28 do CDC que prevê a desconsideração da personalidade jurídica somente quando há mero prejuízo do credor, sendo esse um ponto duramente criticado por muitos, afinal seria a institucionalização das fraudes como um todo, permitindo a má interpretação do principio da autonomia da vontade. Em síntese, este artigo permite que o mero prejuízo do credor como um todo, considerando simplesmente a insolvência civil do credor já autorizaria a desconsideração. Há uma verdadeira má interpretação deste artigo, que permite vários equívocos quanto a consideração do principio da autonomia privada e da limitação de seus sócios.
3.2.3. Direito Econômico
A lei nº 8.884 de 1994, hoje já quase que completamente revogada pela Lei nº 12.529de 2011, que apenas atualizou seu texto, acompanhou nosso Código do Consumidor trazendo as hipóteses de desconsideração nos casos de infração na ordem econômica, como a formação de cartéis e a manipulação de preços. Os casos com os quais se autoriza a desconsideração aqui são os mesmos que os previstos no art.28 do CDC, quais sejam, a infração econômica se caracterizará nos casos de abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos contratos e estatutos sociais, como também no caso de falência ou insolvência provocados por má administração.
3.2.4. Direito ambiental
No âmbito ambiental, seguindo os mesmos trâmites que o Direito Econômico também foi positivada a mesma norma prevista no CDC pela Lei nº 9.605/98, só que neste caso em específico não houve reprodução integral do texto normativo do art. 28 doCDC, mas apenas de seu parágrafo quinto. Assim, sempre que a personalidade jurídica for obstáculo para o ressarcimento dos prejuízos causados ao meio ambiente, deverá esta ser desconsiderada e seus sócios responderem por elas. Assim todo uso indevido da autonomia patrimonial para prejudicar o meio ambiente deve ser punido.
3.2.5. Teoria da desconsideração e abuso de personalidade jurídica: elogio ao art. 50 do código Civil.
O Código Civil de 2002 ampliou e aprimorou o espectro de positivação da desconsideração da personalidade jurídica no Ordenamento jurídico Brasileiro como um todo. Em seu texto fica evidente que vem ele como uma repressão ao abuso na utilização da personalidade, especialmente por parte das sociedades, retornando assim às bases doutrinárias da teoria, desconsideradas em larga medida pelos demais dispositivos. Foi a partir do art. 50 do CC02 que a legislação acolheu a teoria em seus contornos mínimos.
O cerne da questão é o abuso de personalidade, caracterizado basicamente pela “utilização de modo imoral, em desconformidade com os objetivos planejados pelo legislador”[11], sendo que tal abuso poderá ser comprovado ou pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial – aquele caracterizado por uma não utilização da finalidade social da personalidade jurídica, ou seja, um abuso do privilégio que é a personalidade jurídica; e esta caracterizada por uma confusão no patrimônio da Pessoa jurídica com o sócio para benefício desse, devendo considerar ainda que nosso código não acolheu a concepção objetiva da Teoria Maior (que diz ser necessária apenas a comprovação dessa confusão), mas a compreende um fator determinante para a presunção de tal abuso de personalidade.
Vale assim entender que o dispositivo do Código Civil não quis extinguir, ou acabar com a personalidade jurídica, mas sim suprimi-la para que determinadas obrigações assumidas pela pessoa jurídica sejam estendidas aos sócios.
Não se pode se esquecer também que o art. 50 é o enunciado normativo base de toda a teoria aplicada no país atualmente, sendo permitida assim a aplicação dela apenas quando houver abuso de personalidade, seguindo os ideais originários dodisregard doctrine. Vale ressaltar ainda que o mencionado artigo revelou a concepção objetivista (Teoria Maior Objetiva) privilegiada pelo texto legal ao descrever o abuso de personalidade como um desvio de finalidade ou confusão patrimoninal. A ideia de se criar uma personalidade jurídica distinta daquela de seus sócios é o de garantir a autonomia patrimonial, mas devemos sempre nos lembrar que nos casos de eminente abuso dessa proteção, ela não mais se justifica devendo ser desconsiderada portanto. Por fim, ainda, o autor Santa Cruz Ramos concluí:
A previsão normativa do art. 50 do Código Civil, que só admite a aplicação dodisregard doctrine quando há abuso de personalidade jurídica, caracterizado tanto pela demonstração de desvio de finalidade quanto pela comprovação de confusão patrimonial, deveria ser a única regra legal sobre o tema do nosso ordenamento jurídico. O legislador do Código deveria ter revogado as demais disposições legais sobre o tema, que o tratam de maneira equivocada e geram insegurança para o mercado.[12]
3.3. Desconsideração Inversa
Há um questionamento latente que deve ser sanado: Há a possibilidade de se fazer o caminho inverso, ou seja, atingir o patrimônio da pessoa jurídica para saldar dívidas de um devedor de má-fé, que desta se utilizou para se safar de seus credores? Essa questão é respondida por aquilo que chamamos de desconsideração inversa, ou seja, a pessoa jurídica respondendo pela pessoa física. A principal aplicação desta teoria na jurisprudência brasileira atual se dá em questões relativas aos direitos de família, em específico, questões voltadas à execução de alimentos, no qual credores destas obrigações, para fugir de seu cumprimento, transferem todo seu patrimônio para estas. O Conselho de Justiça Federal CJF em seu enunciado 283 diz sobre a desconsideração inversa os seguintes termos: “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.
É preciso lembrar que a desconsideração inversa é fruto de uma construção doutrinária e jurisprudencial. O primeiro doutrinador a fazer considerações a essa foi Fábio Konder Comparato. Já no caso da Jurisprudência, nossos tribunais têm dado várias sentenças neste sentido, ou seja, de desconsiderar a autonomia patrimonial em respeito ao principio da boa-fé, garantindo-se assim a defesa dos credores. Portanto, grosso modo, a desconsideração inversa é justamente o procedimento contrário daquele previsto na desconsideração, ou seja, as dívidas do sócio particular serão saldadas por sua empresa. Obviamente os mesmos requisitos que da desconsideração “comum” devem existir (comprovado abuso da personalidade jurídica).
Geralmente as condutas que levam à decretação deste procedimento são feitas de maneira premeditada e visam uma possível defesa do patrimônio dos sócios por meio da “blindagem patrimonial”, se impedindo assim a frustação de seus patrimônios pessoais. É preciso, portanto, haver uma defasagem no patrimônio do devedor que o impossibilite de saldar suas dívidas, bem como comprovada fraude na transferência do patrimônio particular para a empresa, com o fim de possibilitar sua prevenção patrimonial. Sempre é necessário um ato abusivo de desvio fraudulento, não podendo pelo contrário se falar em desconsideração.
3.4. Aspectos Processuais da Desconsideração da Personalidade Jurídica
3.4.1. Quem é responsabilizado na desconsideração?
Considerando o art. 50 do Código Civil que serve como a Regra geral, ou base para a aplicação da desconsideração em todos os casos, pode-se subentender a responsabilização dos sócios ou administradores por obrigações da sociedade como um todo. A legislação deixa apenas a brecha sobre quais sócios podem ser responsabilizados, sendo eles os minoritários ou majoritários, ficando a encargo da casuística definir quais devem ser os atingidos. Apesar de tal brecha a doutrina traça alguns parâmetros que poderiam ser sintetizados na responsabilização do sócio causador do abuso de personalidade. É consenso na doutrina que o administrador geral deve ser responsabilizado, afinal responderia este, pela gestão, e assim possíveis falhas e abusos.
Com efeito, não podemos incorrer no erro de imputar a responsabilidade apenas ao Gestor, devendo considerar como já mencionado mais acima, aquele sócio, mesmo que minoritário, que se beneficiou do ato gerador da desconsideração. Assim Marlon Tomazetti define:
A desconsideração não se estende a todos os sócios ou administradores, mas àqueles que tenham poder de controle, de gestão ou tenham participado ou se beneficiado pelos atos abusivos ou fraudulentos determinantes de desconsideração[13]
3.4.2. Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica: desnecessidade de uma ação de conhecimento
Mesmo sendo recepcionada pelo sistema jurídico brasileiro, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica ainda carece de uma recepção processual, de um instrumento processual capaz de regular e concretizar de fato todo o procedimento de prestação da tutela jurisdicional. Há uma grande divergência doutrinária e jurisprudencial, no qual, nas palavras de Mamede muitos afirmam:
Desde a possibilidade do reconhecimento incidental, no curso do processo executório de título extrajudicial, execução de sentença, decisão interlocutória em processo de falência ou de insolvência, até posições que, diametralmente opostas, negam mesmo a possibilidade de deferimento liminar da medida, asseverando que somente poderá decorrer do processo de conhecimento, fruto da interposição imperativa de uma ação autônoma, dirigida contra a sociedade e contra o terceiro.[14]
A própria jurisprudência das Cortes Federais e dos tribunais superiores mantêm a mesma insegurança e incerteza jurídica quanto à posição a ser tomada para o melhor caminho processual a se seguir. O próprio STJ entra em conflito jurisprudencial com outros tribunais superiores, como o TST e contra sua própria jurisprudência. O que fica claro e uniforme, apesar de todos os conflitos, é que não pode o juiz decretar a desconsideração ex officio, ou seja, sem decisão fundamentada em um processo regular, salvo casos de nulidade aparente (no qual este recebe amparo do art. 168, parágrafo único, que permite tal hipótese). O artigo 50 do CC02 deve também ser respeitado e seguido, de forma que só pode haver decretação da desconsideração caso haja expresso requerimento da parte interessada ou do MP, sendo respeitado todos os trâmites processuais básicos.
A priori pode parecer absurda a necessidade de se desconsiderar a personalidade jurídica, afinal deve a pessoa jurídica responder por suas obrigações enquanto ente autônomo. Acontece que nos vários processos de execução existentes no ordenamento jurídico pátrio, são inúmeros os casos de insuficiência de patrimônio societário em decorrência do abuso de personalidade, o que faz com para proteger direitos dos credores interessados surja todo um trâmite processual para se assegurar esse direito. Uma questão de relevância processual é que fica (especialmente agora com a vigência próxima do novo CPC): onde deverá ser proferida a decisão de desconsideração? No processo de execução, na própria sentença? Ou será ainda necessário novo processo de conhecimento contra os sócios administradores?
Uma parte da doutrina, como Fabio Ulhoa Coelho [15]e Osmar Vieira da Silva[16], defendem a não possibilidade de este ato ser feito de ofício pelo juiz, sendo necessária uma mínima apuração e produção de provas processuais capazes de fundamentar a condenação, em sentença posterior ao processo de conhecimento, da pessoa jurídica. Já outra parte da doutrina – Gilberto Gomes Bruschi[17], Oksandro Gonçalves e Flávia Lefèvre Guimarães[18], e Gladston Mamede[19] – defende, baseado especialmente no principio da instrumentalidade do processo, a possibilidade da desconsideração ser declarada no processo de execução, considerando o processo de conhecimento importante, mas não essencial para tais conclusões.
O Superior Tribunal de Justiça, STJ, já reconheceu também a desnecessidade de uma ação própria para se obter a desconsideração, afirmando que “a providência prescinde de ação autônoma. Verificados os pressupostos e afastada a personificação societária, os terceiros alcançados poderão interpor, perante o juízo falimentar, todos os recursos cabíveis na defesa de seus direitos e interesses”.[20]Independente de posição jamais poderá o processo de desconsideração ferir os princípios básicos norteadores do Processo, quais sejam as garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
3.4.3. Efetividade e instrumentalidade do processo
O deferimento por parte de um juiz da desconsideração seria apenas a efetivação da tutela jurisdicional do Estado, sendo garantida pelo processo. O acesso à justiça é direito Constitucional assegurado a todos, de forma que o Estado não pode nem deve excluir este acesso indiscriminadamente, mas deve garantir o acesso universal à tutela jurisdicional. Devemos sempre lembrar que na modernidade a autocomposição, ou autotutela não é válida, salvo raras exceções legais, sendo encargo e direito do Estado solucionar os diversos conflitos de interesse existentes na sociedade, aplicando a todo momento as regras do Direito Objetivo, regulando sua tutela jurisdicional pelo seu direito processual. O Estado assim atua como agente responsável pela solução dos conflitos intersubjetivos, atuando como sujeito garantidor da imparcialidade e da justiça no julgamento.
Não podemos compreender este direito de ação como mero formalismo, característica típica dos estados liberais, no qual se garante a igualdade formal e de acesso aos direitos dos cidadãos como um todo, quando na verdade o que se deve buscar na esfera processual é a amplia e efetiva prestação jurisdicional. Assim podemos dizer que o processo caminhou para um grau de maturidade e independência jurídica tamanho que se instrumentalizou, ou seja, o processo chegou ao ponto de ser mero instrumento garantidor da realização do direito material, assegurando a ordem jurídica justa. Assim o processo chegou ao ponto de conseguir garantir a justiça e igualdade entre todos, na busca pelo bem comum.
Considerando toda essa busca pela efetividade do processo e da tutela jurisdicional, deve-se deferir a desconsideração independentemente de um processo de conhecimento com esse objetivo específico. Se fosse necessário tal processo tornar-se-ia moroso o fim pelo qual se desenvolveu a teoria da desconsideração, e a tutela jurisdicional eficaz e adequada.
3.4.4. Processo de conhecimento
Em tese o melhor procedimento processual a ser aplicado de forma a respeitar os procedimentos previstos na Constituição Federal como direitos e garantias processuais, seria a aplicação de um processo de conhecimento no qual deveria ser citada as partes que seriam afetadas pela desconsideração, ou seja, que teriam seu patrimônio particular atingido, garantindo-se assim o amplo direito ao contraditório. Entretanto ainda há grande controvérsia com relação a isso. Uma das posições doutrinárias e jurisprudencial defende a ideia de um processo de conhecimento para investigar possível desconsideração; outra defende da exclusividade de um processo de execução para se declarar a desconsideração. O processo de conhecimento é sim importante para o auferimento maior de provas e garantias de certezas processuais acerca do tema. Deve-se mover ação de conhecimento contra os sócios, para que estes possam ter tempo hábil para se defender.
3.4.5. Processo Cautelar
No que diz respeito à possibilidade de se decretar a desconsideração em processo cautelar impera a mesma divergência do processo de conhecimento vs processo de execução. Os juristas como um todo divergem em suas opiniões. O ex-Ministro do STJ José Delgado, acredita não ser possível em ação cautelar se declarar tal instrumento; nas suas palavras “a desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que só pode ser decretada após o devido processo legal, o que torna a sua ocorrência em sede liminar, mesmo que de forma implícita, passível de anulação”. [21]Enquanto isso, um dos clássicos doutrinadores brasileiros, Gladston Mamede defende discorda do eminente ministro, acreditando na possibilidade de decretação da desconsideração em processo cautelar.
Tal procedimento visa assegurar o não perecimento de um direito que se mostre ao menos evidente em partes, concedendo liminarmente determinada decisão que posteriormente pode ser revogada. A medida cautelar visa assegurara plena eficácia de um futuro provimento do pedido de desconsideração. Tais medidas poderão ser designadas como ou sem audiência preliminar para que a parte contrária se manifeste, devendo sempre respeitar os termos e requisitos do Código de Processo Civil para o processo cautelar presente no código hoje vigente, recebendo agora a denominação de Tutela Provisória ou Tutela de urgência, regulada pelo Livro V doNovo CPC.
3.4.6. Processo de execução
A situação mais comum que marca a desconsideração da personalidade jurídica é a decretação desta em processo de execução judicial ou extrajudicial. Aqui o Juiz defere o pedido mandando penhorar os bens do devedor no caso para responder pela dívida em questão, permitindo-lhe defesa prévia, ou por agravo de instrumento ou por embargos à execução. Aplica-se neste processo o atual artigo 596 que preleciona o processo de execução subsidiária na qual os sócios responderiam subsidiariamente com seu patrimônio após declarada desconsideração.
Vale considerar que a decisão que determine a penhora dos bens dos sócios para responder subsidiariamente deve ser expressamente fundamentada em todos seus aspectos e razões (desde a razão para a desconsideração até a que determina o atingimento de determinados sócios), garantindo-se assim o respeito à fundamentação necessária das decisões judiciárias, conforme previsão constitucional, bem como a proteção dos bens particulares.
3.4.7. Ampla defesa, contraditório e devido processo Legal
Mesmo que a desconsideração seja deferida em processo de execução jamais podemos incorrer no erro de levantar a hipótese de desrespeito às garantias legais de contraditório e ampla defesa, ou mesmo no cumprimento da sentença. Na definição doutrinária de Nelson Nery Júnior, o contraditório pode ser definido como, “a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis”[22] Já ampla defesa significa que se deve dar a oportunidade a todos de se defender de determinado processo, ação, postulado contra si. Por fim o Devido Processo Legal é o principio basilar de toda doutrina processualista, garantindo o acesso de todos os indivíduos a um processo no qual o procedimento legal seja respeitado.
Considerando tudo isso, a desconsideração em processo de execução não pode ser vista como um procedimento que fere tais princípios, visto que as partes possuem capacidade plena de se defender, seja interpondo recursos de agravo, embargos, propondo outros processos e outros, podendo sim reagir à decisão de desconsideração inicial. Como o procedimento de desconsideração é declarado quase que instantaneamente por via de um processo de cognição sumária, no qual o juiz se baseia em juízos de probabilidade e verossimilhança, postergando o contraditório e a ampla defesa para posteriori, não devendo assim ser considerada uma possível violação a tais valores e princípios. A garantia do amplo acesso à tutela jurisdicional é priorizada, mas não se viola os demais valores e princípios. Posterga-se assim o contraditório para agilizar a prestação jurisdicional.
3.4.8. Legitimidade passiva e limites subjetivos da coisa julgada
Um ponto a se questionar é a quem caberia a legitimidade passiva, visto que os sócios e administradores não participariam do processo de conhecimento nem de execução como partes, mas sim a pessoa jurídica, não podendo assim ser alcançados pelos efeitos da coisa julgada. Entretanto isso não impede que desconsideração seja de fato decretada em sede de processo de execução ou de cumprimento de sentença. O atual Código de Processo Civil, em vigor até março de 2016, em seus artigos 592, inciso II e artigo 596, admite em processo de execução a constrição de bens dos sócios nos casos previstos em lei, como é o caso da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
No novo CPC as disposições previstas no antigo códex acerca do art. 592, inciso II, foram copiadas e mantidas nos termos art. 790, inciso II já no novo CPC. Já o art. 596 do antigo código foi reformado e ganhou suas disposições no novo código pelo art. 795, que manteve a parte primeira do artigo suprimiu a parte final do antigo artigo 596 que dizia “o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.”, ganhando a seguinte estrutura:
Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei.
§ 1º O sócio réu, quando responsável pelo pagamento da dívida da sociedade, tem o direito de exigir que primeiro sejam excutidos os bens da sociedade.
§ 2º Incumbe ao sócio que alegar o benefício do § 1º nomear quantos bens da sociedade situados na mesma comarca, livres e desembargados, bastem para pagar o débito.
§ 3º O sócio que pagar a dívida poderá executar a sociedade nos autos do mesmo processo.
§ 4º Para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código.
Estes institutos aqui citados, previstos nos 790 e 795 do novo CPC são relativos à responsabilidade patrimonial secundária, existente em nosso ordenamento jurídico, em especial nos processos de execução, e segundo Tomazetti “se move para a satisfação do direito do credor”[23], no qual, mesmo que os sócios não sejam responsáveis pelo título executivo, ou no caso, pelo crédito, eles devem responder como forma de se assegurar o cumprimento dos fins dos diversos processos existentes. Assim caso a questão da legitimidade passiva seja questionada pelos credores, pode ser sanada pela ideia da responsabilidade patrimonial secundária.
Vale lembrar que não pode-se dizer que haverá violação à coisa julgada, em especial, dentro de seus limites objetivos. Segundo o antigo dispositivo previsto no art. 492, tendo sido recebida e copiada a primeira parte do texto pelo novo código em seu artigo 506, “a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros”. Devemos ter atenção, afinal tal regra poderia nos levar a crer que não seria possível atingir os sócios e os administradores de determinadas sociedades, que não foram partes no processo, mas segundo Marlon Tomazetti: “Não se podem esquecer os chamados efeitos reflexos da coisa julgada, isto é, a coisa julgada só pode atingir diretamente quem foi parte da demanda, mas pode atingir indiretamente terreiros, que não participaram da relação processual original[24]”. Os terceiros, no caso os credores, possuem total legitimidade para questionar e se opor aos reflexos da sentença, no qual indubitavelmente sofreram estes seus efeitos indiretos, contestando sua eficácia, caso sejam prejudicados em concreto.
Portanto, devemos considerar que no que diz respeito aos aspectos patrimoniais, a decretação da desconsideração da personalidade jurídica durante o processo de execução não gera ilegitimidade e não representa ofensa alguma à coisa julgada, mas apenas representa o cumprimento da responsabilidade patrimonial secundária por força dos efeitos reflexos da coisa julgada.
3.4.9. Desconsideração e processo cautelar
Apesar de poder ser declarável a desconsideração em fase de execução, jamais podemos nos esquecer que essa fase não exclui ou elimina os pressupostos básicos necessários para a desconsideração, quais sejam a fraude ou o abuso de direito, devendo sempre lembrar que a desconsideração é a exceção à regra geral no qual deve imperar a autonomia patrimonial das partes como um todo. Assim é necessário buscar a máxima certeza e segurança jurídica acerca do tema. Desta forma é necessária uma prova cabal dos fatos para que seja efetivamente decretada a desconsideração ao caso concreto.
Conclusão
Deve-se considerar que independente da posição doutrinária defendida com relação à personalidade jurídica (se é uma ficção, uma realidade ou etc.) a desconsideração é possivelmente aplicável. Se for uma ficção jurídica criada pelo legislador, pode ele muito bem legislar para desconsiderá-la em determinados casos específicos. Se for uma realidade ela deve se sujeitar aos pressupostos jurídicos, considerando ser estes instrumentos de garantia de ordem e licitude das diversas pessoas; a finalidade das pessoas assim deve ser considerada. De fato a personalidade jurídica seria um privilégios que deve ser controlado pela possível desconsideração.
É preciso considerar por fim, que a Desconsideração da Personalidade Jurídica foi e é uma grande inovação do ordenamento jurídico como um todo. Sua aplicação deve valorizar os princípios basilares das relações privadas e do Direito Processual, para poderem ser de fato mais efetivas e justas as ações por ela determinadas. É um instituto que está em constante evolução doutrinária e jurisprudencial, de modo a melhorar e aprimorar cada vez mais a aplicação legislativa, protegendo a autonomia patrimonial entre os sócios e a sociedades, além de proteger os terceiros afetados.
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