Análise Crítica sobre o artigo 1.829 do Código Civil Brasileiro e suas diversas interpretações
Critical Analysis Over the Article 1.829 of the Brazilian Civil Code and its Diverse Interpretations.
Publicado por Igor Ladeira - 3 horas atrás
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O presente artigo científico foi publicado no periódico jurídico Alethes, da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF.
RESUMO:
O presente artigo científico pretende minudenciar a problemática das várias interpretações dadas ao artigo 1829, I, da Lei 10.406/2002 (Código Civil), que versa sobre a concorrência na herança entre o cônjuge supérstite, casado em regime da comunhão parcial de bens, e os descendentes do de cujus. Para tanto, far-se-á uma análise crítica a cada uma das quatro principais correntes da doutrina pátria acerca do tema, bem como ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Finalmente, o principal objetivo desta obra será encontrar os principais problemas de cada interpretação a fim de provar que nenhuma delas está de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, havendo, pois, urgente necessidade de alteração do dispositivo legal em comento.
Palavras-chave: Concorrência. Sucessão. Comunhão parcial de bens. Artigo 1829Código Civil. Herança.
ABSTRACT:
The following scientific paper intends to detail the problem with the multiple interpretations given to the Article 1929, I, Law 10.406/2012 (Brazilian Civil Code), that talks about the dispute for heritage goods between the living spoUse, married with partial separation of property, and the descendants from the deceased. To this end, will be addressed each of the four main currents of homeland doctrine discussing the topic, as well as the understanding of the Superior Tribunal de Justiça. Finally, the main objective of this work is to find the main problems of each interpretation in order to prove that none of them is in accordance with Brazilian legal system, having therefore an urgent need to change the legal provision under discussion.
Keywords: Concurrence. Sucession. Partial community property. Article 1829 Civil Code. Heritage.
1- INTRODUÇÃO
No que tange ao direito civil brasileiro contemporâneo, o cônjuge sobrevivente obteve grande conquista no campo do direito sucessório, uma vez que o Código Civil de 2002, ao tratar da ordem de vocação hereditária, colocou-o no rol dos herdeiros necessários do cônjuge falecido. Desta forma, sendo herdeiro necessário, o cônjuge supérstite pode concorrer com os descendentes do de cujus em alguns casos.
Porém, a intricada redação do inciso I do artigo 1829 do CC, que determina as hipóteses em que o cônjuge supérstite concorrerá com os descendentes do de cujus, tem sido alvo de severas críticas e deu azo a inúmeras discussões na doutrina e na jurisprudência pátrias. Faz-se necessário, pois, analisar a melhor solução para o conflito, de modo que se respeite a vontade dos contratantes (nubentes no contrato de casamento), a vontade presumida do de cujus eo regime de bens adotado no casamento, evitando que o regime da comunhão parcial sobreponha o da comunhão universal de bens. Tal solução também deve alijar possibilidades de fraude. Diante as controvérsias, surgiram quatro interpretações que se destacaram, as quais serão explicadas e analisadas minuciosamente neste trabalho.
As interpretações e soluções analisadas são as mais fortes e recorrentes na jurisprudência e na doutrina contemporâneas. Para as análises, serão considerados os principais argumentos favoráveis e os principais problemas de cada interpretação dada ao dispositivo supracitado. Destarte, objetiva-se, por meio da análise dos conflitos existentes nos posicionamentos de diferentes doutrinadores, encontrar uma interpretação que seja capaz de profligar os principais problemas levantados e de atingir os objetivos supracitados.
2 - CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS EM TODO O ACERVO PATRIMONIAL, SE HOUVER BENS PARTICULARES.
Trata-se de posicionamento adotado por autores como, Maria Helena Diniz, Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novas Hironaka, que condiciona a concorrência sucessória do cônjuge supérstite com os descendentes do de cujus à existência de bens particulares deixados pelo falecido. Nesse caso, segundo os referidos autores, além do direito à metade de todos os bens comuns, meação – garantida em razão do desfazimento da sociedade conjugal celebrada sob o regime de comunhão parcial de bens -, o cônjuge sobrevivente - por direito sucessório- também recebe uma quota da herança do falecido.
Se o de cujus deixou bens particulares, a concorrência sucessória ocorrerá sobre a totalidade dos bens, tanto em relação aos bens particulares, quanto em relação à meação. Por outro lado, se ele não deixou bens particulares, o consorte sobrevivo terá direito apenas à meação que lhe é garantida em virtude do desfazimento do matrimônio. Destarte, a qualidade de herdeiro, no que tange ao cônjuge sobrevivente, está condicionada à existência de bens particulares deixados pelo autor da herança.
Segundo Maria Helena Diniz:
Pelo novo Código Civil, convém repetir, haverá concorrência do cônjuge supérstite com descendentes do autor da herança, desde que, pelo regime matrimonial de bens, o falecido possuísse patrimônio particular. Para tanto, o consorte sobrevivo, por força do art. 1829, I, só poderá ser casado sob o regime da separação convencional de bens, de participação final de aquestos ou de comunhão parcial, embora sua participação incida sobre todo o acervo hereditário e não somente nos bens particulares do de cujus. Se o falecido não possuía bens particulares, o consorte sobrevivente não será herdeiro, mas tem assegurada a sua meação, sendo o regime de comunhão universal ou parcial. Meação não é herança, pois os bens comuns são divididos, visto que a porção ideal deles já lhes pertencia. Havendo patrimônio particular, o cônjuge sobrevivo receberá sua meação, se casado sob o regime de comunhão parcial, e uma parcela sobre todo o acervo hereditário. Concorre em igualdade de condições com os descendentes do falecido, exceto se já tiver direito à meação em face do regime matrimonial de bens. Terá quinhão igual ao dos que sucederam por cabeça, não podendo sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer (CC, art. 1.832). (2008, p. 105 -106).
Nesse diapasão, Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka afirmam que:
[...]entendimento diverso levaria a uma significativa vantagem à sucessão decorrente da união estável, pois nesta se defere ao viúvo o quinhão sobre bens já integrantes de eventual meação. E, na maioria das vezes, a parcela significativa do acervo hereditário forma-se exatamente na constância do casamento. Convocado o cônjuge, terá direito a uma parcela sobre toda a herança, inclusive recaindo o seu quinhão também sobre bens nos quais eventualmente já possui meação. Diversamente a esta conclusão, porém, talvez a tendência seja considerar a regra como estabelecendo um direito sucessório do cônjuge apenas sobre os bens particulares. Para nós a interpretação nesta linha causa expressiva desvantagem ao cônjuge em cotejo com o companheiro sobrevivente, pois este, como se verá, recebe quinhão sobre os bens adquiridos a título oneroso durante a união, sem prejuízo de sua meação; e, na maioria das situações, a realidade tem nos mostrado que o maior acervo hereditário é conquistado na constância da convivência. (CAHALI; HIRONAKA, 2003, p. 213-214).
Para obliterar possíveis dúvidas e melhor ilustrar o entendimento desses respeitáveis doutrinadores, convém analisar os gráficos abaixo, que demonstram a divisão dos bens do consorte falecido, supondo que este tenha deixado um cônjuge com quem foi casado pelo regime da comunhão parcial de bens e dois filhos.
Suponha-se que o autor da herança tenha deixado um patrimônio no valor de R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) e nenhum bem particular. A divisão do patrimônio deixado seria:
Figura 1 – divisão dos bens comuns do de cujus quando este não deixou nenhum bem particular.
Suponha-se agora que o consorte falecido tenha deixado, além desses bens comuns, R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) em bens particulares. A divisão de seu patrimônio ocorreria da seguinte maneira:
Figura 2 – Divisão dos bens comuns do de cujus quando este deixou bens particulares.
Figura 3 – Divisão dos bens particulares do de cujus.
2.1 - DOS PROBLEMAS DESSE PENSAMENTO
Conforme pode ser observado nos gráficos acima, se no exemplo dado for adotado o posicionamento ora em comento, o consorte sobrevivente receberá: 50% (cinquenta por cento) do imóvel deixado pelo de cujus, em razão do desfazimento da sociedade conjugal; mais 16,67% (dezesseis inteiros e sessenta e sete centésimos por cento) – equivalente a 1/3 (um terço) dos 50% (cinquenta por cento) restantes - do referido imóvel, em razão de ser herdeiro do falecido; mais 33,33% (trinta e três inteiros e trinta e três centésimos por cento) - equivalente a 1/3 (um terço)- dos bens particulares deixados pelo falecido. Enquanto cada herdeiro receberá apenas 16,67% (dezesseis inteiros e sessenta e sete centésimos por cento) dos bens comuns e 33,33% (trinta e três inteiros e trinta e três centésimos por cento) dos bens particulares.
Nota-se claramente a grande desvantagem dos herdeiros em relação ao cônjuge supérstite. Ao fim da partilha este ficaria com um total de R$ 820.000,00 (oitocentos e vinte mil reais), equivalente a 65,08% (sessenta e cinco inteiros e oito centésimos por cento) do patrimônio total (um milhão, duzentos e sessenta mil reais), enquanto os herdeiros ficariam, cada um, com apenas R$ 220.000,00 (duzentos e vinte mil reais), equivalente a 17,46% (dezessete inteiros e quarenta e seis centésimos por cento) do patrimônio total.
Ademais, segundo os ensinamentos dos doutrinadores citados, e conforme pode ser observado nos gráficos ilustrativos, essa linha de pensamento condiciona a qualidade de herdeiro do cônjuge sobrevivente (casado sob o regime da comunhão parcial de bens) unicamente à existência de bens particulares. Sendo assim, a existência de determinado bem particular, que pode, inclusive, ter sido adquirido antes dos nubentes sequer se conhecerem, influenciaria na quota dos bens comuns, adquiridos conjuntamente e com o esforço de ambos, a ser recebida pelo sobrevivente quando da morte do outro.
Tal hipótese é claramente nociva aos demais herdeiros do de cujus. Nesse sentido, é oportuno citar brilhante reflexão de Jônes Figueiredo Alves e Mário Luis Delgado (2005, p.942):
[...] c) A interpretação de que a existência de qualquer bem particular assegura o direito de concorrência no acervo total retira do dispositivo todo sentido prático. Afinal de contas, que pessoa conhecemos não possuiria sequer um bem particular, ainda que sejam aqueles de uso pessoal (art. 1659, V)? Partindo do pressuposto de que não se poderia condicionar a natureza jurídica de bens particulares ao valor deles, podendo concluir que os trapos usados pelo mendigo são bens particulares tanto quanto o vestido de Chanel da rica senhora. Sendo assim, o dispositivo constituiria letra morta, pois os casados sob o regime da comunhão parcial concorreriam com os descendentes em qualquer situação. Ora, tal interpretação também vulnera o princípio da operabilidade.[...]
Outro grande problema do posicionamento adotado por Maria Helena Diniz, Francisco José Cahali e Giselda Maria Fernandes Novas Hironaka é a senda para fraudes que ele cria. Se aplicarmos a interpretação sugerida pelos exímios autores, um consorte poderia facilmente aumentar sua porção na herança do outro. Para tanto, bastaria que ele solicitasse a um amigo que fizesse qualquer doação em nome exclusivo de seu cônjuge.
Nesse sentido aduz Carlos Roberto Gonçalvez, ao criticar as fraudes possibilitadas pela interpretação ora em comento:
[...] cônjuge moribundo recebe doação de determinado bem (art. 1659, I), feita por suposto amigo, na verdade, amante de sua esposa, com o único objetivo de assegurar a concorrência daquela sobre os bens integrantes da meação do marido. Admitir tal possibilidade implicaria violação ao princípio da eticidade. (GONÇAVEZ, 2009, p.153).
Por fim, é salutar observar o disposto no artigo 1.658 da Lei 10.406/2002 (Código Civil), segundo o qual, no regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções feitas nos artigos 1.659[2], 1.661[3] e 1.662[4], do referido dispositivo legal. Assim, a lógica de separação entre o regime da comunhão parcial e o regime da comunhão universal de bens baseia-se na vontade que os nubentes têm em compartilhar os bens adquiridos antes da união. Quando os noivos desejam a máxima comunicabilidade de seus bens, optam pelo regime da comunhão universal.
Destarte, a interpretação em análise consiste numa clara subversão da lógica de separação entre os dois regimes, uma vez que permite que o cônjuge supérstite, casado pelo regime da comunhão parcial de bens, em determinadas hipóteses, logre mais direitos que o casado pelo regime da comunhão universal, conforme pode ser observado no seguinte exemplo:
A e B são casados e possuem um filho C. A falece deixando um patrimônio particular equivalente a R$500,00 (quinhentos reais) e um patrimônio comum - conquistado com a ajuda de B enquanto casados - equivalente a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Se A e B fossem casados pelo regime da comunhão parcial de bens e fosse aplicada a interpretação ora criticada, B concorreria com C em relação à totalidade dos bens deixados por A. Portanto, B ficaria com a metade dos bens comuns - a título de meação -, equivalente a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), e, por haver bens particulares deixados pelo de cujus, concorreria com C no restante dos bens. Deste modo, B receberia – a título de herança – a metade dos bens particulares deixados (a outra metade seria herdada por C), equivalente a R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais) e a metade do patrimônio comum que havia sobrado após a meação, ou seja, 50% (cinquenta por cento) dos R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) restantes, o que equivale a R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais). Os outros R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) seriam herdados por C. Logo, B ficaria com R$ 750.250,00 (setecentos e cinquenta mil, duzentos e cinquenta reais) do total de R$ 1.000.250,00 (um milhão, duzentos e cinquenta reais) deixados por A.
Porém, se A e B fossem casados pelo regime da comunhão universal de bens, B receberia apenas a metade dos bens particulares, equivalente a R$ 250,00 (duzentos e cinquenta reais), e metade dos bens comuns, equivalente a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Ficaria, deste modo, com R$ 500.250,00 (quinhentos mil, duzentos e cinquenta reais), valor bastante inferior aos R$750.250,00 (setecentos e cinquenta mil, duzentos e cinquenta reais) que receberia se fosse casado pelo regime da comunhão parcial de bens.
Deve-se ainda considerar que o regime da comunhão parcial de bens (também conhecido por regime universal) é presumível para os cônjuges que não optam por nenhum tipo de regime de bens. Portanto, não é plausível que se admita que ele seja mais benéfico ao cônjuge supérstite que o regime da comunhão universal de bens, escolhido pelos cônjuges que declaram manifestamente a vontade de garantir a máxima comunicabilidade de seus bens.
É verdade que o regime de bens que irá viger no casamento é de livre escolha dos nubentes - desde que não contrarie o direito -, não sendo eles obrigados a optar por nenhum dos regimes previstos no Código Civil, o que lhes permite adotar um regime particular que expresse mais fielmente a vontade do casal. Todavia, é costume que os noivos optem por algum dos regimes já positivados no código, mormente por desejarem evitar o grande desgaste de passar pela delicada e constrangedora situação de realizar reuniões para discutir sobre o futuro de seus bens em caso de divórcio ou de falecimento de um dos dois.
Diante disso, é preciso que a separação entre os regimes sugeridos pelo Código seja coerente e que seus benefícios sejam determinados. Eles não podem ser confusos e imprevisíveis. Não se pode permitir que a proteção dos regimes de bens seja determinada pelo acaso. No momento da escolha, os cônjuges precisam ter certeza de qual regime será o mais benéfico ao seu consorte; qual lhe garantirá mais proteção e mais direitos.
Porém, a aplicação da interpretação em análise impede que a escolha dos cônjuges, no que tange a sucessão de seus bens, seja segura e realmente garanta que a vontade deles será exercida, uma vez que condiciona a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite - e consequentemente a repartição da herança – à existência de bens particulares deixados por aquele que vier a falecer. Tornando a divisão da herança dependente não exclusivamente da vontade dos cônjuges, mas sim à existência de bens particulares no momento do falecimento de um deles.
Ressalta-se, ainda, a opinião de Jônes Figueiredo Alves e Mário Luis Delgado (2005, p. 942) acerca dos bens particulares, qual seja, a que toda e qualquer pessoa sempre deixará bens particulares, sejam eles de valores insignificantes ou não. Sendo assim, se a interpretação em estudo fosse adotada, a comunhão parcial de bens quase sempre seria mais benéfica ao cônjuge supérstite do que a comunhão universal.
3 - A CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS APENAS NA MEAÇÃO DA HERANÇA, SE NÃO HOUVER BENS PARTICULARES.
Segundo a corrente de pensamento liderada pela ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e atual vice-presidente do IDBFam – Instituto Brasileiro de Direito de Família -, Maria Berenice Dias, o direito a concorrência sucessória entre o cônjuge supérstite, casado pelo regime da comunhão parcial de bens, e os descendentes do de cujus, ocorrerá somente em relação a meação deste último e quando ele não houver deixado bens particulares. Tal posicionamento, a contrario sensu, preconiza que o direito de concorrência do cônjuge está condicionado à ausência de bens particulares deixados pelo de cujus. Portanto, havendo bens particulares, não há se falar em concorrência sucessória entre consorte sobrevivo e descendentes.
Segundo Maria Berenice dias:
Aquele que casa pelo regime da comunhão parcial, com quem já possui patrimônio, quando da morte do cônjuge percebe apenas sua meação. Os herdeiros ficam com a titularidade exclusiva do acervo hereditário composto pela meação do morto e pelo patrimônio preexistente ao casamento. Apesar de todas as críticas a esse raciocínio – que dizem afrontar a letra da lei -, é o único que (...) corresponde à vontade manifestada pelo casal quando do casamento, ao optarem pelo regime da comunhão parcial. (...) a quota do cônjuge só pode ser calculada sobre os bens adquiridos durante o casamento, sob pena de chancelar-se o enriquecimento injustificado de quem em nada contribuiu para amealhar o patrimônio. Interpretação diversa deste intrincado e pouco claro dispositivo legal subverteria o próprio regime de bens eleito pelas partes. Os nubentes, ao optarem pelo regime da comunhão parcial (não firmando pacto antenupcial), querem garantir a propriedade exclusiva dos bens particulares havidos antes do casamento e dos recebidos por doação ou herança, dividindo-se somente o patrimônio adquirido durante a vida em comum. Claro que, quando da dissolução da sociedade conjugal, os cônjuges desejam que os bens sejam partilhados dessa maneira. É a velha expressão: o que é meu, é meu; o que é teu, é teu; e o que é nosso, metade de cada um. (DIAS, 2008, p. 109).
Por fim, essa corrente de pensamento levanta uma questão interessante acerca do motivo para as diversas interpretações do inciso I do artigo 1.829 do Código Civil. Segundo Maria Berenice dias, a diversidade de interpretações é fruto da confusa redação do mencionado inciso, mormente à pontuação, isto é, ao ponto e vírgula inserido no texto em comento. Para a doutrinadora, após o ponto e vírgula, passa-se a tratar de assunto diverso, não enquadrado pela expressão “salvo se”. Nesse sentido, eis o seu magistério:
Em respeito à natureza do regime da comunhão universal, o direito à concorrência só pode ser deferido se não houver bens particulares. Outra não pode ser a leitura deste artigo. Não há como contrabandear para o momento em que é tratado o regime da comunhão parcial a expressão “salvo se”, utilizada exclusivamente para excluir a concorrência nas duas primeiras modalidades: o regime da comunhão e o da separação obrigatória. Não existe dupla negativa no dispositivo legal, pois na parte final – após o ponto-evírgula -, passa a lei a tratar de hipótese diversa, ou seja, o regime da comunhão parcial, oportunidade em que é feita a distinção quanto à existência ou não de bens particulares. Essa diferenciação nem cabe nos regimes antecedentes, daí a divisão levada a efeito por meio do pontoevírgula. Isso inverte totalmente o sentido da norma, pois afasta o direito de concorrência na hipótese de ode cujus possuir patrimônio particular. Exclusivamente no caso de não haver bens particulares é que o cônjuge concorre com os herdeiros. (DIAS, 2008, p. 160).
Ainda sobre esse ponto:
Primeiro, a lei exclui o direito de concorrer de forma incondicionada, pela simples identificação do regime de bens (comunhão universal ou separação obrigatória). Ao depois, prevê outra hipótese (o regime da comunhão parcial), mas limita a concessão do direito à inexistência de bens particulares. Na terceira exceção, portanto, é excluído o direito de concorrência exclusivamente no caso de haver bens particulares. É o que diz a lei: (a sucessão legítima defere-se)... Aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, (...) se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares[5].
Analisando o mesmo caso do exemplo dado na página 3, qual seja: consorte falecido deixa um cônjuge com quem foi casado pelo regime da comunhão parcial de bens e dois filhos. À época do falecimento o autor da herança possuía R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) em bens comuns e nenhum bem particular. Segundo a corrente de pensamento em estudo, teríamos:
Figura 4 – Divisão dos bens comuns do de cujus.
Todavia, se o autor da herança deixar bens particulares, tais serão divididos unicamente entre os filhos (metade para cada um), enquanto os bens comuns serão divididos da seguinte forma:
Figura 5 – Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus quando há bens particulares.
3.1 - DOS PROBLEMAS DESSE PENSAMENTO
A justificativa dada por Maria Berenice Dias para que o cônjuge supérstite, casado pelo regime da comunhão parcial de bens, herde sobre a meação dos bens comuns deixados pelo de cujus é que houve esforço mútuo dos consortes para adquiri-los e que o desejo manifestado pelo casal ao optar pelo regime da comunhão parcial era dividir os bens adquiridos conjuntamente. Todavia, com toda a vênia à ilustre autora, no casamento realizado sobre o regime da comunhão universal também há esforço mútuo na aquisição dos bens e a vontade dos nubentes em dividir os patrimônios é ainda mais evidente e incontestável. E no casamento realizado pelo regime da comunhão universal de bens, não há concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente com os descendentes do de cujus.
Portanto, segundo o pensamento em comento, se o cônjuge supérstite for casado pelo regime da comunhão universal de bens, este não terá o direito à concorrência sucessória com os descendentes em hipótese alguma. Doutro lado, se o cônjuge sobrevivente for casado sob o regime da comunhão parcial de bens – e o falecido não houver deixado bens particulares – ele terá o direito de concorrer com os descendentes na meação do de cujus. Fica claro que, uma vez não havendo bens particulares deixados pelo falecido, o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da comunhão parcial de bens terá direito a uma parte maior da herança do que o cônjuge casado pelo regime da comunhão universal de bens que esteja nas mesmas circunstâncias.
Outro problema a ser considerado é que a interpretação sugerida por Maria Berenice Dias possibilita fraudes semelhantes às permitidas pela interpretação estudada no tópico anterior[6]. Porém, agora o cônjuge sobrevivente não será mais o possível beneficiado pela fraude, mas sim o principal prejudicado, uma vez que pode ter seu direito à concorrência sucessória fraudado por descendentes do de cujus.
Nesse sentido, suponha-se a seguinte situação.
A é casado com B pelo regime da comunhão parcial de bens. A possui um filho - C - que não é filho de B. Ocorre que a relação entre B e C é conflituosa. Deste modo, C, com o intuito de beneficiar-se em detrimento de B, faz uma doação em nome exclusivo de A – de preferência enquanto este estiver moribundo ou em idade bastante avançada, para garantir que faleça sem desfazer-se do bem doado. Assim, A passa a possuir bens particulares e B não será mais considerado seu herdeiro em relação aos bens comuns por ele deixados. Assim, C aumentaria sua porção nos bens comuns deixados por A, prejudicando B.
A adoção da interpretação em análise, também contraria o princípio da operabilidade, princípio fundamental do Código Civil de 2002. Nesse sentido, convém observar mais uma vez os brilhantes ensinamentos de Guilherme Couto de Castro. Se o mencionado autor, conforme supracitado, mostrou que o de cujus sempre deixará algum bem particular, por mais simplório que seja, o posicionamento em comento tornaria o inciso I do artigo 1.829 letra morta, uma vez que a condição necessária para o cônjuge supérstite adquirir direito a concorrer com os descendentes jamais seria satisfeita. Desse modo, o cônjuge supérstite nunca se tornaria herdeiro do de cujus, uma vez que a condição “se o autor não houver deixado bens particulares” nunca – ou quase nunca - será satisfeita.
4 - DA CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE ASSEMELHADA À CONCORRÊNCIA DO COMPANHEIRO COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS.
4.1 - A TEORIA DEFENDIDA POR ROBERTO SENISE LISBOA
Os defensores do posicionamento que será exposto interpretam o artigo 1829, I, doCódigo Civil fazendo um paralelo entre o texto legal e a atual evolução das relações afetivas. Destarte, segundo a interpretação em comento, no casamento realizado sob o regime da comunhão parcial de bens, deve-se estabelecer um regime jurídico semelhante ao disposto no artigo 1.790 do Código Civil.
Assim dispõe o referido artigo:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. (BRASIL, Lei 10.406,2002, art. 1.790).
Convém fazer uma breve análise sobre o artigo em comento. Segundo exemplo dado por Theotonio Negrão (Negrão, 2011, p. 601), no que tange ao inciso I: “Tendo sido onerosamente adquiridos durante a união estável bens em valor equivalente a R$ 6.000,00, e havendo dois descendentes comuns, o companheiro recebe R$ 3.000,00 a título de meação, mais R$ 1.000,00 a título de herança, e cada descendente herda R$ 1.000,00”.
Já em relação ao inciso II:
tendo sido onerosamente adquiridos durante a união estável bens em valor equivalente a R$ 6.000,00, e havendo dois descendentes exclusivos do de cujus, o companheiro recebe R$ 3.000,00 a título de meação, mais R$ 600,00 a título de herança, e cada descendente herda R$ 1.200,00 (NEGRÃO, Theotonio, 2011, p.601).
Portanto, percebe-se claramente uma vantagem do companheiro em relação ao cônjuge casado em comunhão parcial de bens se adotarmos o entendimento da doutrina majoritária, qual seja, que este último só concorre com os descendentes dode cujus se ele houver deixado bens particulares, e tal concorrência se dará unicamente em relação a tais bens. Conforme pode ser observado, o companheiro irá concorrer independentemente da existência de bens particulares e sobre todo o acervo comum.
Nesse sentido, faz-se oportuno observar as reflexões do Promotor de Justiça, Roberto Senise Lisboa:
A lei civil não teria, atualmente, qualquer razão para impedir o concurso se o de cujus não tivesse deixado bens particulares. Até mesmo diante do fato de que, na união estável, o convivente sempre participará da sucessão com os herdeiros necessários do de cujus, sem qualquer restrição, salvo aquela que estabelece limites de percentual quando o descendente herdeiro for apenas filho do autor da herança. Esse comparativo entre direitos outorgados pela lei civil ao cônjuge sobrevivente e ao convivente é inevitável para demonstrar-se o equívoco legislativo efetuado, mediante um tratamento desigual e preconceituoso. (LISBOA, 2010, p. 361).
Percebe-se que, na prática, o defendido por Roberto Lisboa é muito semelhante ao posicionamento de Maria Berenice dias, porém, sem o grande problema de condicionar-se a qualidade de herdeiro do cônjuge supérstite à ausência de bens particulares deixados pelo de cujus, o que, conforme já foi visto, daria margem a fraudes.
Lisboa ainda destaca:
Se o convivente se beneficia em qualquer hipótese com a sucessão, bastando que seja reconhecida, ainda que incidentalmente, a união estável, sendo os efeitos patrimoniais equiparados aos da comunhão parcial de bens, não há razão para adotar-se uma interpretação que suprime o direito do cônjuge sobrevivente de concorrer à toda a sucessão, se casado em comunhão parcial de bens. (LISBOA, 2010, p. 364).
Portanto, para o Promotor, necessário seria a modificação legislativa do artigo 1829, Ido Código Civil a fim de estabelecer entre os cônjuges casados pelo regime da comunhão parcial de bens, um regime jurídico sucessório semelhante ao estabelecido, pelo artigo 1.790 do mesmo dispositivo, entre os companheiros.
4.2 - DO PROJETO DE LEI Nº 508, DE 2007
No sentido de atenuar as diferenças entre o regime sucessório da união estável e o do casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens, foi criado o projeto de Lei nº 508, de 2007, de autoria do Deputado Sérgio Barradas Carneiro, relatoria da Deputada Jô Moraes. Tal projeto visa revogar o artigo 1.790 do Código Civil de 2002 e alterar o artigo 1.829, do referido dispositivo.
A redação do novo artigo 1829 sugerida pelo Projeto de Lei foi proposta pelo IDBFam (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e assim determina:
Art. 1829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;III - ao cônjuge sobrevivente ou ao companheiro sobrevivente;IV – aos colaterais.Parágrafo único. A concorrência referida nos incisos I e II dar-se-á, exclusivamente, quanto aos bens adquiridos onerosamente, durante a vigência do casamento ou da união estável, e sobre os quais não incida direito à meação, excluídos os sub-rogados.[7] (Projeto de Lei PL 508 de 2007).
Conforme pode ser observado, a redação dada pelo Projeto de Lei em comento não é exatamente a solução sugerida por Roberto Senise Lisboa, uma vez que permite a concorrência do cônjuge supérstite com os descendentes do de cujus também em relação aos bens particulares por ele deixados.
4.3 - DOS PROBLEMAS COM O PROJETO DE LEI 508/2007
Um dos principais motivos para justificar a revogação do artigo 1.790 e a nova redação do artigo 1.829 - ambos do Código Civil-, segundo os defensores do projeto de lei 508/2007 é que, com a atual redação dos dispositivos em comento, no que tange aos direitos sucessórios, a união estável é favorecida em relação ao casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens.
Porém, no regime da comunhão universal de bens o cônjuge supérstite não herda sob a meação do de cujus. Destarte, poderão ocorrer situações em que não só o casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens, mas também a própria união estável, garantam mais proteção e benefícios ao cônjuge ou companheiro do que o casamento pela comunhão universal de bens.
Imaginemos a seguinte hipótese: A casa-se com B pelo regime da comunhão universal de bens. No momento do casamento, A não possuía nenhum bem particular de valor considerável, apenas alguns bens móveis (roupas, materiais de trabalho etc). Ao longo da vida de casados, A e B tiveram dois filhos e construíram um patrimônio avaliado em R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais). Quando A morre, de acordo com o estabelecido regime de comunhão adotado pelo casal, B terá direito apenas a sua meação, ou seja, R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), os outros R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) serão divididos entre os dois filhos, herdando cada um R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais).
Figura 6 – Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus, quando este era casado pelo regime da comunhão universal de bens.
Todavia, se A e B vivessem em união estável – ressalta-se aqui que o mesmo ocorreria se fossem casados pelo regime da comunhão parcial de bens - e as alterações propostas pelo Projeto de Lei 508/2007 estivessem em vigor, B herdaria os R$ 300.000,00(trezentos mil reais) referentes à sua meação, mais R$ 100.000,00 de herança do de cujus. Os filhos, por sua vez, herdariam, cada um, apenas R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Figura 7 – Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus quando este vivia em união estável.
Portanto, percebe-se que o Projeto de Lei 508/2007 não resolve o problema a que se propôs, qual seja, impedir que a união estável garanta mais direitos que o casamento. O que o Projeto de Lei tenta fazer é apenas mudar o local de sua incidência. Se o problema estava na vantagem auferida à união estável se comparada com o casamento em regime da comunhão parcial de bens, com as alterações propostas pelo Projeto, ele passaria a residir na vantagem daquele que vive em união estável em relação àquele casado pelo regime da comunhão universal de bens.
5 - CONCORRÊNCIA DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE COM OS DESCENDENTES DO DE CUJUS APENAS NOS BENS PARTICULARES.
Trata-se de corrente majoritária na doutrina, sendo defendida por autores como: Theotonio Negrão, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Carlos Roberto Gonçalves, Guilherme Couto de Castro, Silvio de Salvo Venosa, entre outros. Segundo esses autores, o cônjuge supérstite casado pelo regime da comunhão parcial de bens concorre com os descendentes do de cujus apenas nos bens particulares por ele deixados.
O sentido da lei, em princípio, foi proteger o cônjuge quando ele nada recebe a título de meação (VENOSA, 2005, p. 138). Acrescenta-se que tal proteção deve ocorrer somente quando não vai diametralmente contra a vontade clara do de cujus. Destarte, na hipótese de casamento realizado em comunhão universal de bens, como o patrimônio será obrigatoriamente dividido, não há se falar em recebimento de herança pelo cônjuge sobrevivente. Igualmente, no regime de separação obrigatória, o consorte sobrevivo não herdará, sob pena de haver fraude ao sistema. De maneira análoga, o cônjuge supérstite não será herdeiro se for casado pelo regime da separação convencional de bens, pois, caso contrário, haveria claro desrespeito à expressa vontade do de cujus.
Nesse sentido, convém observar que diante de tantos posicionamentos acerca do disposto no inciso I do artigo 1.829 do Código Civil e do grande congestionamento no judiciário causado pelas constantes discussões sobre o tema, o Conselho da Justiça Federal consolidou, na III Jornada do Direito Civil, o enunciado 270, que determina:
O art. 1829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em que a concorrência restringe-se a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes. (III Jornada de Direito Civil, 2005, p. 70).
Deste modo, convém analisar como ficaria a divisão de bens na seguinte hipótese: consorte falecido deixa um cônjuge com quem foi casado pelo regime da comunhão parcial de bens e dois filhos. O patrimônio do autor no momento do falecimento era de R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) em bens comuns e R$ 60.000 (sessenta mil reais) em bens particulares.
Figura 8 – Divisão dos bens comuns deixados pelo de cujus.
Figura 9 – Divisão dos bens particulares deixados pelo de cujus.
5.1 - DOS PROBLEMAS COM ESSE PENSAMENTO
Uma das críticas acerca dessa interpretação dá-se em relação à autonomia de vontade dos nubentes. Para os que discordam dessa interpretação, ao optar pelo regime da comunhão parcial de bens os nubentes estão declarando expressamente a vontade de impedir a comunicabilidade dos bens particulares de cada um e garantir a comunicabilidade dos bens adquiridos, onerosamente, em conjunto. Portanto, permitir a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes e ascendentes do de cujus no que tange aos bens particulares deixados por este último, violaria sua vontade (a do consorte falecido) expressa.
Todavia, a principal crítica à essa corrente é a de que, conforme visto no item 4 deste artigo, sua aplicação garante menos direitos ao casamento feito sob o regime da comunhão parcial de bens do que possui a união estável.
5.2 - DA ARGUMENTAÇÃO FAVORÁVEL
Primeiramente, no que diz respeito à crítica do desrespeito a autonomia da vontade dos noivos que realizam o casamento sob o regime da comunhão parcial de bens, é preciso ter em mente que, uma vez que tal interpretação seja adotada, não há se falar em desrespeito à autonomia de vontade dos contratantes no contrato de casamento, pois, no momento da escolha do regime de comunhão de bens, os nubentes terão ciência de que o regime da comunhão parcial faz do consorte sobrevivo herdeiro do consorte falecido no que tange aos bens particulares. Se os nubentes tiverem ciência da interpretação da lei e ainda assim optarem em realizar o casamento pelo regime da comunhão parcial, estarão declarando que é exatamente esta a vontade deles, uma vez que o ninguém é obrigado a adotar determinado regime de bens, sendo o casal livre para criar seu próprio regime de bens, com regras diferentes daquelas previstas no Código, desde que não viole as disposições legais.
Ainda sobre as vantagens do pensamento em análise, é salutar observar as reflexões de Guilherme Couto de Castro, Juiz Federal da seção Judiciária do Rio de Janeiro e autor do projeto aprovado III Jornada de Direito Civil. Nesse sentido, argumenta o respeitável pensador:
a) Se a ratio essendi da proteção sucessória do cônjuge foi exatamente privilegiar aqueles desprovidos de meação, a concorrência sobre todo o acervo iria de encontro à própria mens legis. O intérprete que assim procede despreza a vontade do legislador, a qual, independentemente da eterna polêmica entre mens legis emens legislatoris, sempre constituirá critério válido para se penetrar no sentido e alcance de qualquer norma jurídica. Por outro lado, ao se privilegiar quem já era detentor de meação em detrimento das gerações futuras do autor da herança, representadas pelos seus descendentes, deixa-se de atender o princípio da sociabilidade; b) Assegurar a concorrência sobre a totalidade da herança de acordo com a existência ou não de bens particulares pode dar ensejo a fraudes, como na hipótese em que o cônjuge moribundo recebe doação de um determinado bem (art. 1659, I), feita por suposto amigo, na verdade amante de sua esposa, com o único objetivo de assegurar a concorrência desta sobre os bens integrantes da meação do marido. Admitir tal possibilidade implicaria violação ao principio da eticidade; c) A interpretação de que a existência de qualquer bem particular assegura o direito de concorrência no acervo total retira do dispositivo todo sentido prático. Afinal de contas, que pessoa conhecemos não possuiria sequer um bem particular, ainda que sejam aqueles de uso pessoal (art. 1659, V)? Partindo do pressuposto de que não se poderia condicionar a natureza jurídica de bens particulares ao valor deles, podendo concluir que os trapos usados pelo mendigo são bens particulares tanto quanto o vestido de Chanel da rica senhora. Sendo assim, o dispositivo constituiria letra morta, pois os casados sob o regime da comunhão parcial concorreriam com os descendentes em qualquer situação. Ora, tal interpretação também vulnera o princípio da operabilidade; d) O princípio da unidade da herança não pode ser visto como dogma, nem o seu rompimento pelo disposto na parte final do inciso I do art. 1829 implica qualquer prejuízo ao sistema. Trata-se (o inc. I) de exceção ao princípio da unidade, à semelhança do que existe em diversos outros ordenamentos jurídicos, como o argentino, o qual, nesse sentido, foi mais claro que o nosso Código Civil. (CASTRO, 2005. P. 414 - 115).
Tal argumentação foi escolhida por elencar vários dos principais argumentos dos defensores da concorrência do cônjuge supérstite com os herdeiros do de cujusapenas nos bens particulares.
6 - DO POSICIONAMENTO DO STJ
O Superior Tribunal de Justiça uniformizou o entendimento[8] de que o cônjuge sobrevivente, casado em regime da comunhão parcial de bens, concorre com os descendentes do de cujus somente em relação aos bens particulares deixados por este último.
Nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DOCÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. (...) 2. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. 3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus. 4. Recurso especial provido. (Brasília. Superior Tribunal de Justiça, 2015, grifo nosso).
7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme visto em todos os casos analisados, a incongruência de pensamentos em relação ao inciso I do artigo 1829 do Código Civil é motivo de grande debate na doutrina brasileira. Diante as análises feitas neste trabalho, percebe-se que não há, atualmente, uma solução capaz de dirimir todos os problemas trazidos pelo referido dispositivo legal. Cada uma das interpretações sugeridas enseja problemas consideráveis e de complexas resoluções. Diante disso, pode-se inferir que o critério utilizado pelo legislador para determinar se haverá concorrência do cônjuge com os descendentes do de cujus é por demasiado falho.
Pode-se dizer que perante a atual redação do inciso em análise, a interpretação mais adequada é a adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e pela doutrina majoritária (concorrência do cônjuge sobrevivente e dos descendentes do de cujus apenas nos bens particulares deixados por este último), tendo em vista que, malgrado apresente problemas - mormente o de não impedir que a união estável sobreponha-se ao casamento realizado sob o regime da comunhão de bens em alguns casos-, garante a proteção do cônjuge supérstite e os direitos dos demais herdeiros, dificulta a existência de fraudes e não condiciona a qualidade de herdeiro do consorte sobrevivo à existência de bens deixados pelo de cujus.
Todavia, embora a interpretação supramencionada seja a mais adequada, é mister destacar que nenhuma das interpretações sugeridas é capaz de sanar integralmente os problemas, uma vez que há má redação legislativa e as interpretações devem ser limitadas pela letra da lei, ou seja, o intérprete não pode assumir o papel do legislador e modificar categoricamente o que está positivado no código, ainda que sob o argumento de melhorar o disposto na lei. Portanto, a solução ideal seria o legislador fazer modificações no campo do direito sucessório, a fim de garantir que: (I) o casamento realizado sob o regime da comunhão parcial de bens e a união estável estejam em igualdade de direitos, impedindo que um sobreponha-se ao outro; (II) que o casamento pelo regime da comunhão universal de bens não seja desfavorecido em relação ao casamento realizado pelo regime da comunhão parcial de bens e (III) que não haja possibilidades para fraudes.
Para tanto, o mais adequado seria revogar o artigo 1.790 do Código Civil e tratar, no mesmo dispositivo legal, dos direitos sucessórios oriundos dos casamentos e das uniões estáveis, garantindo que tanto o cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens, quanto o (a) companheiro (a), além de possuir metade de todos os bens adquiridos onerosamente em conjunto, seja herdeiro (a) do de cujus apenas no que tange aos bens particulares deixados por este. Essa alteração no disposto noCódigo Civil resolve o último problema da interpretação sugerida: impede que a união estável tenha mais direitos que o casamento realizado sob o regime da comunhão universal de bens, sem causar extremos prejuízos e discriminações à união estável.
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