domingo, 31 de janeiro de 2016

O esforço em não cumprir a Lei!

O esforço em não cumprir a Lei!

Trata-se de todo o esforço processual que as empresas fazem para não cumprir um texto legal, que muitas vezes é uma norma fechada e direta, e o amparo que o judiciário dá para que esta conduta continue existindo.

Publicado por Giuliano Satriano - 2 dias atrás
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Na vida de advogado militante, é possível contemplar diversos fenômenos jurídicos que acontecem no decorrer dos processos, fenômenos que apesar de não estarem transcritos no ordenamento jurídico, saltam aos olhos nos mais diversos casos, mudando apenas os nomes das partes, dos juízes e dos advogados.
Dentre tantos fenômenos repetitivos, um dos mais presentes e ao mesmo tempo lamentáveis é o grande esforço que uma empresa faz em não cumprir a lei.
Não estão em questão as técnicas que advogados habilidosos e bons conhecedores da lei utilizam para ganhar tempo ou “travar” uma demanda visando beneficiar seus clientes da forma mais variada possível. Taís técnicas não são deméritos ou falhas de caráter, são apenas um meio processual de obter o melhor resultado para o cliente, e ao advogado que sabe trabalhar nas lacunas da lei, restam as mais merecidas congratulações.
O problema começa quando uma das partes dispende esforços, sejam monetários ou pessoais para não cumprir uma determinação judicial ou um texto legal.
Vou narrar o caso consumerista de Caio para exemplificar a ocorrência deste fenômeno jurídico, relação regida pelo Código de Defesa do Consumidor ou CDC, que é um texto legal bem direto, sendo que na maioria dos seus artigos não há grandes margens interpretativas.
O caso é dividido em dois polos, ativo e passivo, tendo no polo ativo um consumidor descontente com um produto defeituoso (Caio) e no polo passivo uma grande empresa fabricante de Tablets.
Imagine que Caio o consumidor de boa-fé já efetuou todos os trâmites que o CDCorienta em seu Art. 18, levou o seu Tablet a assistência técnica, após 40 dias o devolveram ainda defeituoso, fazendo com que Caio exigisse seu dinheiro de volta, ele ligou, foi transferido, a ligação caiu, ele mandou um, dois, dez e-mails, quando finalmente, após ter seus telefonemas e e-mails ignorados pela empresa, desiste e se encaminha valido de boa-fé – afinal esta é presumida no nosso ordenamento atual – ao Juizado Especial Cível da sua comarca, com um pouco de indignação por ter sido tão mal atendido pela empresa nos seus justos requerimentos.
Uma vez no Juizado Especial, Caio se depara com funcionário que também não o atende bem, não explica direito o que ele precisa fazer, e até mesmo (fato que tem ocorrido na prática) exige que ele já venha com uma petição inicial pronta, algo que ele não tem a capacidade técnica de realizar, e nem é obrigado a ter, afinal ele não é advogado.
Desorientado, Caio decide procurar um causídico para dar andamento no seu pleito, a esta altura o consumidor já está inconformado, frustrado, mas ainda tem esperanças de que agora munido de um defensor técnico a justiça será feita.
O advogado o recebe, entende e explica que o caminho em teoria é simples, afinal a empresa está contrariando o CDC, as alegações de Caio, ora seu cliente, são legítimas, estão garantidas por provas e protegidas no acolhedor CDC, porém, o advogado, já calejado avisa que nem sempre as coisas seguem como estão na lei. Contudo, Caio entende isso de forma genérica e está muito confiante, pois afinal fez tudo certo e a empresa está completamente errada, e mais um processo – que não precisaria existir se a empresa cumprisse a lei – se inicia.
Logo na primeira e importantíssima audiência de conciliação, Caio vai acreditando que logo seu problema será sanado – mesmo sob incansáveis avisos de seu advogado, lembrando que dificilmente alguma coisa aconteceria lá neste dia – mas Caio acredita na justiça.
Crença essa que começa a se esvair, quando ele se deparada não com um advogado do outro lado e tampouco com algum representante sério da empresa que deu causa a demanda. Do outro lado há apenas um preposto, sendo este qualquer funcionário capacitado para repetir uma só frase frente ao simpático conciliador: “Não temos proposta de acordo”.
Então todos se levantam, Caio ainda sem entender muito bem o que está acontecendo, vê todos se despedindo com a costumeira cordialidade padrão e escuta – desta vez com mais atenção – de seu advogado que isso já era esperando e que somente na próxima audiência haverá alguma decisão relevante, em síntese, todos perderam seu tempo naquele dia.
Neste ponto, gostaria de fazer uma pausa na narrativa, para trazer já uma ação que pode ser considerada de má-fé por parte da empresa, pois se o produto está com defeito, se foram feitos os trâmites iniciais para conserto e estes não obtiveram sucesso, porque tanta resistência em efetuar a devolução do suado dinheiro do consumidor? Quanto trabalho e tempo seriam poupados se logo de cara a empresa cumprisse o que diz claramente o CDC em seu Art. 18, abaixo transcrito.
“Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.
§ 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;
II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III - o abatimento proporcional do preço.”
A empresa prefere ingressar numa longa demanda judicial, ao invés de meramente cumprir um texto legal que foi escrito de forma simples propositalmente pelo legislador, para que todos sejam capazes de entender e interpretar.
Voltemos então a jornada de Caio ao longo do nosso sistema judicial.
Passados quase seis meses após o primeiro contato de Caio com o seu advogado, é chegada a data da audiência de instrução e julgamento, desta vez a empresa aparece com seu advogado, e estando todos de frente a um magistrado, Caio entende que neste dia sim, será feita justiça.
Após a oitiva de todos, o magistrado nota que a terceira linha, da vigésima página do processo, está meio ilegível, e isso pode sem dúvidas ser decisivo ao processo, sendo assim, ele solicita que o documento seja novamente apresentado no processo, e encerra a audiência.
Desnorteado, Caio até então sujeito calmo e equilibrado, sai pelo fórum profanando palavrões, pois não acredita que mais uma vez saiu de casa para ir ao fórum pensando que teria seu problema resolvido, mas não teve.
O advogado da empresa, conhecendo bem a Lei 9.099/95 ou Lei dos Juizados Especiais, faz uma petição requerendo uma perícia no produto.
Como perícia é uma prova complexa, não está dentro da capacidade do Juizado Especial Cível e o magistrado entende que fazer perícia em um aparelho que a própria empresa não arrumou e devolveu quebrado é uma prova essencial, então ele encerra o caso sem o julgamento do mérito, orientando que para esse tipo de prova é necessário que Caio se dirija a Vara Cível da justiça comum.
O advogado explica para Caio que ele tem duas opções, ou ele faz um Recurso Inominado no juizado direcionado para o Colégio Recursal, correndo o risco do Colégio tomar a mesma postura do magistrado que proferiu o encerramento do processo sem julgamento do mérito.
Outra opção seria começar do zero em uma Vara Cível comum, e todo o tempo que passou passaria por perdido, novamente se passariam de dois a quatro meses para uma nova audiência de conciliação inútil, mais três a quatro meses para nova audiência de instrução e julgamento, sem falar nas custas processuais e eventuais honorários sucumbenciais caso a demanda fosse desfavorável.
A esta altura, Caio está completamente perdido, ainda que seu advogado repita as opções processuais, como um mantra, ele não consegue se decidir.
Agora, faço outra pausa na narrativa, mais uma vez é notável todo esforço que a empresa faz para não cumprir a lei, ou ao menos fazer o que é certo e justo. Neste momento o consumidor está completamente desacreditado da justiça brasileira, ele vê seu direito legítimo e líquido, ser pulverizado por uma empresa que agindo de má-fé, fazendo com que o consumidor chegue a pensar que a empresa tem algum problema pessoal com ele, pois não entende tanto esforço para não admitirem que o produto é defeituoso e efetuar o ressarcimento.
Vamos regressar ao que se tornou já uma aventura de Caio na confusa justiça brasileira.
Caio junto com seu advogado decide correr do Juizado Especial Cível, e iniciam novamente a demanda, desta vez na Justiça Comum, recolhe as custas e a inicial é protocolada.
Como já tinha conhecimento da inutilidade e perda de tempo da audiência de conciliação, então pediu para seu advogado que não manifestasse interesse na dita audiência.
Sendo assim o processo correu até a audiência de instrução e julgamento, sete meses após o início do processo na Vara Cível, desta vez sem falhas, o magistrado por fim profere a sentença favorável a Caio.
Caio sente um misto de alegria e alívio, mas com alguma desconfiança, ele não consegue acreditar que acabou. E de fato não acabou.
O advogado da empresa fala as piores palavras que Caio poderia ouvir: “nós vamos recorrer”.
Um ano após ouvir as tórridas palavras, Caio já nem lembrava do processo, já estava utilizando um Tablet que comprara de outra marca, quando recebe um e-mail de seu advogado, dizendo que o recurso foi julgado pelo Tribunal de Justiça e que eles tinham saído vitoriosos na demanda.
Caio fica feliz por um instante, afinal a justiça tarda mas não falha, como reza o ditado popular, mas será que não falha?
A felicidade de Caio dura até o nobre causídico ler para ele os termos da sentença, cuja qual trazia uma ordem para que fosse devolvida a quantia investida no aparelho defeituoso corrigida, somada a quantia de R$1.000,00 de dano moral.
Tempos depois Caio recebeu seu reembolso mais o seu dano moral, mas não estava feliz por completo, afinal entre o seu primeiro processo no Juizado Especial, o julgamento sem resolução do mérito, o ingresso na Vara Cível e a sentença final do Tribunal de Justiça, se passaram quase três anos.
Três anos, foi o tempo que Caio levou para ter seu justo pedido atendido e ver a lei ser cumprida, e no final a empresa foi punida com o estorno do valor do produto corrigido mais mil reais.
Terminada a narrativa, restam algumas questões para um completo entendimento deste fenômeno.
  • Afinal de contas, porque a empresa se esforçou tanto para não cumprir a lei?
  • Qual foi o grande benefício recebido pela empresa a não atender uma justa queixa de um consumidor de boa-fé?
  • A empresa prefere de fato se “amarrar” na justiça por anos ao invés de simplesmente cumprir o que está escrito no texto legal?
Não é possível encontrar na lógica qualquer resposta sensata a essas questões.
A justiça por outro lado, fez sua parte para incentivar esse tipo de prática recorrente das grandes empresas, aplicando um dano moral pífio que se quer pode fazer diferença nas contas da empresa ou como se diz popularmente “nem faz cócegas no bolso”.
Se ao invés de mil reais, tivessem aplicado um dano moral de caráter punitivo no valor de um milhão de reais, é certo que a empresa pensaria duas vezes antes de criar problemas para devolver o dinheiro do consumidor quando um de seus produtos é defeituoso.
Para ser completamente justo tal quantia nem precisaria ir para o bolso do consumidor lesado em sua integralidade, que fosse direcionada para alguma Santa Casa ou criassem um fundo para reverter essas quantias para a saúde ou segurança públicas. Não é necessário enriquecer o consumidor para se punir uma empresa quando está obra de má-fé.
Nosso ordenamento jurídico faz o caminho inverso da lógica, desencoraja as pessoas a demandar pelos seus direitos ao passo que encoraja as empresas a continuar com sua conduta desrespeitosa perante o consumidor, pois quem comanda os departamentos jurídicos das empresas sabe que ao final compensará mais lesar dez consumidores e pagar uma quantia pífia a um único corajoso que resolveu ir buscar o reconhecimento do seu direito na justiça.
Observando nosso ordenamento jurídico como um todo, desde a legislação até as decisões proferidas pelos tribunais superiores, resta o triste sentimento de que todo esse esforço em não cumprir a lei no Brasil, tem valido a pena.

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