domingo, 31 de janeiro de 2016

Cópia Fiel: do crime ao processo ou do processo ao crime?

Cópia Fiel: do crime ao processo ou do processo ao crime?

Publicado por Canal Ciências Criminais - 1 dia atrás
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Cpia Fiel do crime ao processo ou do processo ao crime
Por Maurício Sant’Anna dos Reis
Na maioria das vezes que se pretende problematizar qualquer questão relativa às ciências criminais utilizando-se um filme (ou série, ou outra forma de representação artística) procura-se – ao menos eu procuro – alguma obra que invariavelmente tratará sobre violência, ou sobre um julgamento, senão sobre ambos. Desafio-me, todavia, a quebrar um pouco tal perspectiva nessa coluna. O filme sobre o qual se pretende análise não fala sobre violência, ou julgamento, ou temas afins; ao contrário, se tomado por um olhar acrítico, poder-se-ia afirmar que a trama gira em torno de uma situação trivial vivida por um casal. Todavia, o pano de fundo em que se realiza a trama traz pontos interessantíssimos para análise.
Cópia Fiel (Copie Conforme, 2010), de Abbas Kiarostami, de largada nos apresenta uma hipótese interessante: será que uma cópia possui valor maior do que o original? Partindo dos pressupostos de James Miller (Willian Shimell), aclamado autor do livro que empresta nome ao título do filme, existiria uma dificuldade histórica entre diferir a originalidade e a reprodução, de modo que a cópia, ao menos, teria o valor de atestar o valor artístico do original, como é pontuado na palestra que profere na Toscana que dentre os presentes tem Elle (Juliete Binoche), galerista local. Elle, dissuadida pelo filho (pré-adolescente) não consegue ficar até o final da palestra, conseguindo, sem embargo, convidar Miller para um tour pela região no dia seguinte.
Aceito o convite, Elle conduz Miller pelas encantadoras vias da toscana chegando ao museu que abriga a “Musa Polimnia” (de acordo com Elle, a Gioconda da Toscana), obra que por muito tempo passou-se pela original romana, sendo descoberto a pouco se tratar de uma cópia feita por um talentoso falsificador do século XVIII; neste caso, a versão original, escondida no ostracismo assemelha-se a um esboço de sua cópia, indubitavelmente mais bela, em outras palavras, uma cópia mais importante do que a original.
A partir desse ponto o filme nos conduz a mais uma reflexão: não seria, também, o original cópia da realidade que retrata e, em sendo, não seria igualmente mais importante? O desdobramento se desenvolve durante a trama sendo impossível seguir daqui sem trazer imperdoáveis spoilers, de modo é melhor que o resumo da obra fique nesse estágio.
Do até então trazido, todavia, acredito que já existam elementos suficientes para abordarmos noções fundantes do direito e do processo penal: o conceito de crime e o objeto do processo penal[1].
Consagrado é modernamente o conceito analítico de crime, o qual determina a necessidade de uma conduta humana típica, ilícita e culpável. O crime, portanto, por assim dizer, não pré-existe ao fato, mas o contrário, no caso concreto dele emergirá. Com isso podemos afirmar que a partir da existência de um fato natural/social é que poderá se falar de crime, ou seja, esse último não é natural na sociedade, ao contrário, poderia ensejar o estado de anomia na sociedade. Dessa forma, o fato preexiste ao crime, mas o crime, todavia, é somente uma forma de olhar o fato, ou seja, o conceito de crime é construído sobre determinado fato, enfim, não seria incorreto afirmar que o crime nada mais é do que a réplica do fato, na medida em que determinado fato concreto deverá ser analisado e considerado típico, ilícito e culpável. De outra forma, utilizando a síntese de Paulo Queiroz: “[…] não existem fenômenos criminosos, mas apenas uma interpretação criminalizante dos fenômenos […]”[2].
Mais do que isso, essa análise prescindirá de um processo, uma vez que o direito penal não é autoaplicável, ou seja, somente é possível ao juiz, devidamente provocado pela acusação, submetendo seus termos à produção de provas e essas provas ao devido contraditório (em apertadíssima e arriscada síntese), aplicar a pena prevista em lei. O processo portanto, tratará das provas de um crime, dos discursos sobre esses provas e da percepção que faz o julgador sobre esses discursos, enfim, de uma cópia do crime, que por sua vez é cópia do fato.
Ora, como cópia, poderá se aproximar ou afastar do primeiro retrato, contudo, indubitavelmente, se apressado o processo – e aqui me refiro ao flagrante e sua natureza alucinatória[3] – ou demasiadamente arrastado, perder-se-á as caraterísticas do que se copia, do que se debate, ou como será que ficaria uma cópia feita em menos de vinte e quatro horas, ou o trabalho alongado por mais de vinte quatro anos?
Voltando ao filme, ainda quando se quer original a cópia é o máximo que olho do artista pode captar, da mesma forma, o caso penal, pretensão acusatória é o máximo que o processo consegue atingir. Pode ser que a cópia apresente imperfeições que o original poderia aclarar, mas por se tratar do instante, resta aceitar a réplica possível, devidamente trabalhada no processo.

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