quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Um caso de possessão demoníaca


Um caso de possessão demoníaca

Publicado por Canal Ciências Criminais - 6 horas atrás

Um caso de possesso demonaca
Por Henrique Saibro
Você pode estar se perguntando qual a relação entre um caso de possessão demoníaca com as ciências criminais. Ora, são vários os liames de um assunto com o outro. É que, durante a Inquisição Católica, casos de denúncias envolvendo enredos diabólicos não viravam roteiros hollywoodianos; eles iam a julgamento.
HUXLEY, visionário escritor britânico, mais conhecido por seu romance utópico “Admirável Mundo Novo” e entusiasta do uso responsável do LSD, escreveu um ensaio crítico sobre um caso real de julgamento aos moldes inquisitoriais: uma suposta possessão de todo um convento em meados do século XVII, no interior da França, por diferentes demônios.
As supostas possuídas, em repetidas sessões de exorcismo, teriam acusado o pároco local Urban Grandier de ter feito um pacto com o diabo e de ser o responsável por todas as possessões demoníacas, culminando, então, no início de um longo processo voltado à apuração da denúncia, o que ensejou diversas torturas contra o padre e, ao final, a sua execução pública na fogueira.
Ocorre que o processo foi decorrência de um lobby por parte da população masculina influente na cidade francesa de Loundun, em razão de Grandier ser um jovem atraente devasso e bastante apreciado pelas fiéis – relacionando-se muitas vezes com esposas e filhas da alta sociedade francesa.
HUXLEY não se limita a narrar o caso mediante a análise de manuscritos e autobiografias dos personagens do episódio, mas também traça um interessante diagnóstico crítico sobre a política, religião, economia e, sobretudo, ao sistema processual da época – e daí a importância da obra para o presente estudo.
O escritor inglês deixa claro o quão paranoica e esquizofrênica era a sociedade do século XVII em estados regidos pela inquisição católica. Qualquer acontecimento atípico era visto com olhos sobrenaturais, como, por exemplo, tempestades devastadoras, impotência sexual e doenças venéreas. Tudo era imputado à feitiçaria, daí porque “as justificativas para espionar e as oportunidades para a delação e a perseguição eram inumeráveis” (HUXLEY, 2014, p. 156). HUXLEY ressalta que no auge da caça às bruxas do século XVI, “a vida social em determinadas regiões da Alemanha deve ter sido muito semelhante àquela sob o domínio nazista ou num país recentemente dominado pelos comunistas” (idem, ibdem).
Na época, um dos métodos para descobrir se uma pessoa era, de fato, um bruxo, era o investigado possuir um mamilo extra, ou ter adquirido, ao toque do dedo do diabo, algumas pequenas áreas de insensibilidade, onde o espetar de uma agulha não cause dor nem provoque sangramento. Para se ter uma ideia das fraudes investigativas da época, Grandier foi submetido ao referido teste, tendo o cirurgião Mannoury sido encarregado de fazer uma vivissecção no pároco:
Grandier foi despido, completamente depilado, vedaram-lhe os olhos e foi então sistematicamente picado até o osso com uma sonda longa e afiada. […] Depois de grande número de terríveis espetadelas, ele virava a sonda ao contrário e a pressionava contra a pelé do pároco. Milagrosamente não havia dor. O diabo tinha marcado o local (idem, op. Cit. p. 189-190).
A partir do início do século XVII, o simples fato de um cidadão ser declarado feiticeiro era considerado um crime capital. “O ato praticado pelo acusado podia ser inofensivo, como no caso da adivinhação, ou mesmo benéfico, como no caso de curas através de sortilégios e magias” (idem, op. Cit. p. 149). Se houvesse “prova” de que o acusado teria adquirido tais dons mediante “entrevista com o diabo”, o ato era criminoso e seu executor, condenado à morte.
As regras processuais tidas como justas na época, se fizermos um paralelismo com os nossos atuais padrões ocidentais, eram uma caricatura monstruosa da justiça. Permitia-se que qualquer testemunha fosse admitida como prova. “E não só toda a gente, incluindo crianças e seus inimigos mortais, era aceita como testemunha; toda espécie de prova era também admitida – boatos, mexericos, deduções, sonhos recordados, declarações feitas por possuídos” (idem, op. Cit. p. 152).
Igualmente, a tortura estava sempre de acordo com os regulamentos jurídicos, frequentemente utilizada para obter confissões. Ocorre que com a tortura vinham as falsas promessas em relação à sentença final. Existiam três alternativas, legalmente previstas, ao alcance dos magistrados. A primeira ele podia prometer à “bruxa” conservar a sua vida mediante a condição de revelar outras “bruxas”, sendo que a mantença dessa promessa era mera faculdade do julgador. Se mantivesse a sua palavra, o apenamento mortal era convertido para prisão perpétua “em solitária a pão e água” (idem, op. Cit. p. 153).
Havia uma segunda alternativa consistente na quebra da promessa de que a vida da bruxa seria preservada. É dizer, após ser colocada na prisão, o plácito era mantido por algum tempo, mas “depois de um determinado período ela será queimada” (idem, ibdem).
Por fim, a terceira possibilidade era a de o juiz poder “prometer sem risco a vida à acusada, mas de tal modo que depois poderá renunciar à obrigação de proferir a sentença, incumbindo outro juiz em seu lugar” (idem, ibdem). Isso era um processo justo, regido por regramentos inquisitivos, durante o século XVII.
Nunca devemos duvidar da capacidade maléfica do ser humano – “não existe horror que não possa ser aventado por mentes humanas. Sabemos o que somos, mas não sabemos o que podemos ser” (idem, op. Cit. p. 229). Em tempos brasileiros de recrudescimento da moralidade e do fundamentalismo, ainda mais quando estabelecidos em plena Câmara de Deputados e no Senado, tudo é possível. Esperemos que continuemos avançando temporalmente e não regressemos nos meados do século XVI. Caso contrário, novas bruxas surgirão e a caçada (re) começará.

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